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O novo Ensino Médio

Não é necessário revogar a lei, mas reformas substanciais são imprescindíveis

Valor

O novo ensino médio foi criado em 2017 através de uma medida provisória que alterou profundamente a organização deste nível de ensino. A implementação das medidas necessárias para esta reorganização foi sendo protelada, entretanto, tanto devido à ineficiência do governo Bolsonaro como pela pandemia. Mas, desde 2021 algumas redes estaduais começaram a implementar a reforma, que tem se mostrado problemática, a tal ponto que várias entidades estão pedindo sua completa revogação. Assim, o governo atual suspendeu o calendário de implementação e fará uma consulta pública. Será que deveríamos revogar o novo ensino médio e planejar uma reforma do zero?

Nos últimos trinta anos, avançamos bastante em termos de acesso e permanência na escola. Em 1992, somente 30% dos jovens de 22 anos de idade completavam pelo menos alguma série do ensino médio, ao passo que atualmente mais de 75% deles atinge este nível. Como consequência, o acesso ao ensino superior também aumentou muito neste período e foi democratizado com o novo sistema de acesso (SISU) e com as cotas.

É um passo correto na tentativa de diminuir a evasão, mas tem vários problemas de concepção e de implementação

Porém, o aprendizado dos alunos no ensino médio permanece num nível muito baixo, o que impede um aumento ainda maior das matrículas no ensino superior e faz com que o desemprego entre os jovens seja elevado. Além disto, uma parcela significativa dos jovens que iniciam o ensino médio não o conclui, especialmente entre as famílias mais pobres. O novo ensino médio foi desenhado para tentar resolver estes problemas. Será que ele vai conseguir?

As principais medidas da reforma no ensino médio são: a ampliação da carga horária mínima, com estímulos para que as redes ofereçam o ensino médio de tempo integral. Divisão da carga horária em duas partes, uma dedicada à Formação Geral Básica (disciplinas tradicionais) e outra dedicada à oferta de itinerários (disciplinas mais práticas e interdisciplinares). Estes itinerários deverão ser oferecidos dentro de áreas de conhecimento específicas, ou como parte do ensino técnico/profissional. Está previsto um teto máximo de 1.800 horas para a Formação Geral Básica, sendo que o restante deverá ser oferecido através dos itinerários formativos.

A hipótese principal que permeia estas medidas é que o problema da evasão decorre da falta de interesse dos jovens pelo ensino médio tradicional, que era muito engessado, com cerca de 17 disciplinas sendo oferecidas para todos os alunos ao longo do curso. Assim, os jovens mais interessados no mercado de trabalho perdiam interesse e evadiam. Com a diversificação das trilhas formativas, os jovens interessados no ensino técnico, por exemplo, podem concentrar sua formação nas matérias técnicas e já sair com certificado profissional direto para o mercado de trabalho.

Este diagnóstico está correto, em linha com o que já ocorre em vários países do mundo. Assim, a reforma seria um passo na direção correta. Mas, existem alguns problemas de concepção e implementação do novo ensino médio. Em termos de concepção, há dois problemas principais. A especialização em áreas de conhecimento não pode deixar de lado quem quer fazer ensino superior. O cobertor é curto: temos que oferecer alternativas atraentes e úteis para manter os jovens mais pobres na escola e, ao mesmo tempo, oferecer o aprofundamento necessário no conhecimento para que o aluno possa ingressar e ter um bom desempenho na faculdade para os que assim o desejarem. Vale lembrar que os maiores diferenciais de salários e emprego estão no ensino superior.

A reforma caminha para resolver o problema da evasão, mas pode agravar o segundo problema, ao diminuir o número de horas da formação geral básica, que contém as disciplinas tradicionais. Ao mesmo tempo, as disciplinas dos itinerários formativos, que teriam como objetivo justamente aprofundar o conhecimento básico em cada área, não necessariamente contemplam o conhecimento avançado das disciplinas tradicionais. Além disto, parte das disciplinas poderá ser oferecida à distância. Assim, será necessário reformar a lei para aumentar a proporção mínima de horas dedicadas à formação geral básica. Precisaremos também avaliar a efetividade das disciplinas que serão oferecidas à distância.

O outro ponto de atenção é a possibilidade de aumento das desigualdades. As redes de ensino têm autonomia para definir quais itinerários irão ofertar. E não há como garantir que disciplinas de todas as áreas de conhecimento serão oferecidas em todas as escolas. Assim, em algumas redes os alunos poderão ter mais dificuldades para escolher disciplinas nas áreas em que têm mais vocação. Isto poderá ampliar as desigualdades dentro do sistema público e entre as redes pública e privada. É preciso que o processo de escolha da área de conhecimento esteja nas mãos dos alunos e não das redes ou das escolas.

Em termos implementação da reforma, o processo está confuso e desigual entre as redes. Não há professores em número suficiente para ensinar todas as disciplinas eletivas, nem com formação adequada para lecionar os itinerários nas diferentes especializações. Além disto, não parece haver um critério claro para a escolha das disciplinas que serão oferecidas, e não fica claro como muitas destas disciplinas agregarão conhecimento útil para os alunos.

Além disto, depoimentos dos alunos que já estão cursando os itinerários formativos indicam que eles acabam passando muito tempo sem aulas e frequentam disciplinas que fazem pouco sentido do ponto de vista pedagógico. Muitos afirmam que gostariam de ter mais disciplinas tradicionais. Isto poderá causar uma redução no aprendizado que os alunos das escolas públicas obtêm no ensino médio.

Em suma, o novo ensino médio é um passo correto na tentativa de diminuir a evasão e dar mais liberdade de escolha para alunos com diferentes vocações, mas tem problemas de concepção e implementação. Estes problemas podem ser corrigidos, aumentando a carga horária da formação geral, padronizando a oferta de itinerários entre as redes e oferecendo disciplinas de todas as linhas de conhecimento em todas as escolas. Não é necessário revogar a lei, mas estas mudanças são imprescindíveis.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-novo-ensino-medio.ghtml

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Sobre o autor

Naercio Menezes Filho