Para o ex-presidente do Banco Central, em prazo mais longo é preciso um ajuste maior do que o anunciado
Valor
O ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga vê com bons olhos “o início de um trabalho difícil” do ministro Fernando Haddad, da Fazenda:
Valor: Que impressão lhe causou o anúncio das primeiras medidas fiscais do ministro da Fazenda?
Arminio Fraga: Eu diria que foi um bom primeiro passo. Achei correto o ministro reconhecer que nessas medidas tem muita incerteza e muitas receitas que não são recorrentes. Em prazo mais longo, é preciso um ajuste até maior do que o anunciado, que vá além do controle da dinâmica de crescimento da dívida pública. Se o país quer atingir seu potencial, trabalhando nos grandes temas da desigualdade e da falta de oportunidade, e de temas macroeconômicos como a produtividade, precisamos repensar o direcionamento geral do gasto público. É um trabalho que vai levar tempo.
Valor: Há algo a destacar nessas primeiras medidas?
Arminio: Tem dois aspectos importantes, para além das medidas anunciadas. Primeiro, a manutenção do aumento do salário mínimo já concedido, portanto o abandono da ideia de dar um novo aumento. Isso mostra bom senso. O segundo ponto é a recuperação do Cadastro Único, eliminando distorções introduzidas no Auxílio Brasil. Não só porque esse foi um gasto que não passou por um crivo de prioridades. Mas também por causa da qualidade da política social, já que as pessoas estavam se recadastrando individualmente para receber mais. Corrigir isso é importante.
Valor: As medidas pendem para o aumento de receitas. Poderia ser feito mais do lado do gasto?
Arminio: Do lado do gasto, onde tem dinheiro? Na Previdência, na folha de pagamentos e nos regimes especiais de imposto de renda. O dinheiro está ali e é muito. Quero crer que isso vai entrar em discussão. Principalmente a parte do IR. Seria absurdo um governo do PT não mexer nele. Do lado fiscal, é claro que o que se obtiver vai ser dividido com estados e municípios. A relação federativa está meio chacoalhada depois da desoneração do ICMS, no ano passado.
Valor: Se o ajuste chegar ao máximo estimado, embora o ministro considere improvável, o BC pode ser levado a começar mais cedo o ciclo de baixa da Selic?
Arminio: Poder, pode. Se ocorrer, por exemplo, uma valorização do câmbio, que hoje embute um prêmio de risco razoável.
Valor: Um ajuste de 2% do PIB pode ter impacto no crescimento?
Arminio: Acho que teria um impacto altamente positivo. Foi assim em 1999, quando houve um ajuste de 4 pontos, até mais, e o PIB cresceu bem durante vários trimestres. A experiência oposta foi no governo Dilma, que fez uma megaexpansão e legou uma recessão enorme. Agora, o Brasil tem a perspectiva de um conjunto de boas notícias, na área ambiental, por exemplo, que poderia colocar a economia em trajetória de crescimento acelerado.
Valor: No ano passado, o sr. assinou uma carta ao presidente Lula alertando sobre o perigo da irresponsabilidade fiscal. Essas primeiras semanas indicam mais comedimento?
Arminio: As posições que o governo eleito vinha externando eram extremamente preocupantes. Uma atitude raivosa em relação aos temas de responsabilidade fiscal, sinais de retrocessos na Previdência, nas relações trabalhistas, no marco do saneamento, no uso de bancos públicos, no uso e abuso da Petrobras. Muita coisa. Agora, o ministro Haddad deu uma freada de arrumação que é importante.
Valor: Na primeira semana no ano, declarações do ministro da Previdência, Carlos Lupi, sobre uma “antirreforma” previdenciária foram desautorizadas pela Casa Civil. É um sinal de ruído?
Arminio: Como dizem os americanos, só temos uma chance de causar uma boa impressão. Houve essa correção, mas já havia ficado a imagem de que era isso que queriam fazer. Por isso vejo as medidas de Haddad com bons olhos. É o início de um trabalho difícil.
Valor: Qual é sua expectativa para o novo arcabouço fiscal?
Arminio: Não existe um modelo único que funcione, mas algumas coisas têm que estar presentes. A relação dívida/PIB não pode seguir crescendo, então tem que ter algum mecanismo de controle. Aí, alguma flexibilidade é inevitável e desejável, mas precisa ter mecanismos de volta. Como no caso da pandemia, em que era preciso gastar, gastou-se, mas com o fim da pandemia era preciso ficar um tempo poupando, recuperar o balanço do governo, para que ele possa, inclusive, enfrentar outras emergências. E é preciso eliminar a política pró-cíclica. E depois vem a questão do tamanho do Estado, que era o foco do teto de gastos.
Valor: Para este ano, a reforma mais adiantada é a dos tributos indiretos. A economia seria afetada de imediato?
Arminio: Acho que sim. E creio que várias das reformas já feitas estão tendo impacto na produtividade e na economia. A reforma seria um fator de confiança, porque nosso sistema tributário é um manicômio completo. Aí vem o lado político: como o Congresso, com o perfil que tem, vai lidar com essas questões? Essa é outra encrenca.
Valor: O lado político deve pesar ainda mais na tentativa de mudar o imposto de renda. Dá para contar com uma reforma?
Arminio: Qualquer reforma não vai ser aplaudida de pé e resolvida com uma votação simbólica, unânime. Tornar o IR mais progressivo é um desafio antigo. Não podemos contar com uma reforma, mas é preciso tentar.
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