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Cem anos de confusão

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A América Latina difundiu o realismo fantástico. Os personagens reagem a eventos sobrenaturais como se esses fizessem parte de seu cotidiano, causando certo grau de estranheza no leitor. No caso do Brasil, em que pese a importância da obra de autores como José J. Veiga, o realismo fantástico encontrou sua principal expressão na área econômica, em particular no que se refere a temas associados ao Orçamento federal.

Há muito se sabe que o Orçamento é uma peça de ficção. O que deveria ser o exemplo maior de participação da população nos rumos do país virou uma composição que: (a) seus formuladores sabem não valer o papel em que foi impresso; (b) deputados e senadores também sabem; e (c) todos sabem que os demais também sabem. Em suma, um enorme jogo de faz de conta.

Nesse contexto, basta a leitura da proposta orçamentária para saber que não para de pé. As previsões de receitas são grosseiramente exageradas, requentando várias das medidas anunciadas no ano passado, que fizeram água estrondosamente ao longo de 2024, como o “voto de qualidade” no Carf, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.

A ideia era que, em caso de empate no Carf, o voto de qualidade do governo federal daria ganho de causa à Receita, criando incentivos para que os contribuintes que questionavam cobranças acabassem por fazer acordo com o Fisco, elevando a arrecadação. O teste prático da hipótese mostrou que contribuintes preferem continuar a disputa fora da esfera administrativa, no caso a judicial, sem maiores ganhos para o Tesouro. Ainda assim, o mesmo argumento foi invocado para justificar receitas de quase 30 bilhões de reais em 2025.

De forma similar, gastos com Previdência e assistência são subestimados. Moral da história: o déficit de 2025 será muito maior do que o sugerido pela proposta oficial, e provavelmente ainda mais alto do que o valor a ser registrado ao terminar este ano.

Uma nova camada de fantasia foi criada, contudo. Há despesas que impactam o Orçamento, mas que são desconsideradas para fins de aferição do resultado em comparação à meta fiscal. Gastos com precatórios, por exemplo, serão descontados do resultado do Tesouro Nacional em 2025 e 2026.

Nessa mesma linha, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, autorizou a abertura de créditos extraordinários para o combate às queimadas, que não devem ser computados para tetos ou metas fiscais, “para fazer frente à grave ‘pandemia’ (sic) de incêndios”.

Não faltam objetivos nobres, como combater a “pandemia” de incêndios, pagar dívidas atrasadas, auxiliar estados em apuros etc.; falta apenas o dinheiro. Se não há entrada de recursos para bancar os gastos, só há uma saída: tomar mais dinheiro emprestado num primeiro momento para, no seguinte, reclamar do fardo dos juros do endividamento adicional.

Regras fiscais existem para convencer o distinto público, que empresta dinheiro ao governo, que a dívida não é uma bola de neve impagável. Se convencidos disso, os investidores não exigirão juros elevados; caso contrário, sim. O realismo fantástico orçamentário só serve para aumentar o custo da dívida.

STF se acostumou a interpretar leis a seu bel-prazer, mas não conseguiu ainda reverter as regras da aritmética.

Link da publicação: https://veja.abril.com.br/coluna/alexandre-schwartsman/cem-anos-de-confusao/

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Sobre o autor

Alexandre Schwartsman