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A liquidez, o risco e o real

ESTADÃO

Uma das consequências do pânico no início da pandemia foi o aumento da aversão ao risco, que por um breve momento fortaleceu o dólar. Contudo, o Fed reagiu rapidamente derrubando a taxa dos fed funds para o “zero técnico” (0,25% ao ano) e realizando um QE maior do que o de 2008/09, dando início ao enfraquecimento do dólar. Medido pelo dollar index , com o dólar no denominador e no numerador uma média ponderada de sete moedas (euro, iene, libra esterlina, dólar canadense, dólar australiano, coroa sueca e franco suíço), o dólar já se enfraqueceu 10%. 

À exceção de países em crise (Argentina, Turquia e, em menor grau, o Peru), as moedas de todos os demais deveriam se valorizar acompanhando o dollar index. Foi isso que ocorreu com as moedas da Coreia do Sul, Croácia, Lituânia, Polônia, República Checa e Nova Zelândia.

Em gráficos com o dollar index no eixo horizontal e cada uma dessas moedas no eixo vertical, os pontos se concentram em torno de uma reta com igual posição e declividade antes e depois do choque da pandemia. Para esses países a informação sobre o dollar index é suficiente para estimar o valor esperado de sua moeda. 

É diferente do que ocorre com as moedas da África do Sul, Chile, Colômbia, Hungria, Índia e México. Embora antes e depois da pandemia todas sejam sensíveis ao dollar index, no período após o choque pandêmico suas moedas se mantiveram mais depreciadas. Em um gráfico semelhante ao anterior os pontos se concentram em torno de duas retas paralelas, porém a que se ajusta aos pontos após o choque tem uma posição mais elevada.

Estes são países com economias mais frágeis, e como a pandemia elevou o risco percebido pelos investidores, estes se defendem retendo uma proporção maior de ativos de países de menor risco. 

Brasil e Rússia diferem de todos esses países. No momento do choque, suas moedas se depreciaram bem mais do que todas as outras, mas logo após ambas se tornaram insensíveis ao dollar index. Entretanto, o real se manteve bem mais depreciado do que o rublo, e isto se deve ao maior risco fiscal do Brasil.

Olhei, também, para a moeda da Ucrânia que, ao se aproximar da União Europeia fez um amplo conjunto de reformas, com enorme queda do risco, e por isso sua moeda vem flutuando próximo do nível registrado em 2018. 

Por que as moedas são sensíveis ao dollar index? Os EUA conduzem a política monetária como se fossem uma economia fechada, e nunca intervém no mercado de câmbio. Se existirem intervenções, elas são realizadas pelos demais bancos centrais.

Como disse John Connally, o Secretário do Tesouro de Nixon quando os EUA foram questionados pelos demais países por romperem o acordo de Bretton Woods, “o dólar é a nossa moeda, mas é o vosso problema”. 

Tudo se inicia com a expansão monetária nos EUA, que gera uma liquidez abundante a juros baixos, estimulando os fluxos de capitais. Em um mundo de taxas de juros baixas os capitais buscam os países de menor risco. Por isso, Coreia do Sul, Croácia, Lituânia, Polônia, República Checa e Nova Zelândia seguiram de perto os movimentos do dollar index, e é por isso que dentre os países com economia mais frágil os capitais preferem a África do Sul, Chile, Colômbia, Hungria, Índia e México, e não o Brasil.

E é isso que explica porque as moedas de Argentina, Turquia e Peru continuaram se depreciando, e a de um país reformista – a Ucrânia – manteve o mesmo valor de um ano antes do início da pandemia. 

Entre 2008 e 2014 o real era muito sensível ao dollar index que, corrigido pela paridade de poder de compra, podia ser usado para prever o comportamento do real. A valorização do real entre 2002 e 2011 coincide com um ciclo de enfraquecimento do dólar mais intenso do que o atual. No período, o País cumpria o compromisso com os superávits primários, e o risco fiscal era baixo.

Costuma-se atribuir a valorização do real nesse período ao aumento dos preços de commodities, mas a elevada correlação inversa entre eles e o dollar index nos leva a concluir que pelo menos uma parte do movimento veio do enfraquecimento do dólar. 

No passado os capitais se dirigiam abundantemente para o Brasil, que era um pais de baixo risco, e atualmente se dirigem a outros emergentes. Entre as moedas dos emergentes o real se transformou em um patinho feio, que somente se transformará em um cisne branco quando tivermos um governo competente na formulação e na execução da política econômica. Mas terá que ser muito diferente do atual. 

Link da publicação: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,a-liquidez-o-risco-e-o-real,70003646979

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Affonso Pastore