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Por que Bolsonaro ataca o ministro Barroso?

Globo (publicado em 06/08/2021)

O que há de comum entre o político que usa a imunidade para espalhar mentiras e destruir adversários, o parlamentar que nomeia assessores para fazer rachadinhas e o presidente com cumplicidade parlamentar suficiente para praticar crimes de responsabilidade e não ser punido? É a capacidade de se valer das sombras do Direito.

O Direito não consegue atender bem a todas as necessidades de regulação da vida social. São muitas suas zonas de sombra.

A realidade da vida é complexa, e as normas têm dificuldade em ser claras, precisas e abrangentes na separação entre o lícito e o ilícito (insuficiência normativa). O Direito dá muito crédito às pessoas e, por razões de princípio, na dúvida, presume como normais até as coisas estranhas que elas fazem no dia a dia (“favor libertatis”). O infrator pode escapar ileso porque são restritos os recursos materiais e humanos para reprimir ilícitos, ou porque não se consegue prová-los (ineficácia prática das normas). Há omissões voluntárias das autoridades que deveriam atuar na repressão (por autocontenção ou prevaricação).

No campo das atividades públicas, efeito negativo dessas limitações é dar vantagens competitivas a potenciais abusadores. São sujeitos que se especializam em agir nas zonas de sombra jurídica para se beneficiar dos próprios desvios, alguns bastante graves, no uso de bens, poderes, direitos ou pessoas sob seu domínio.

Mas o mundo jurídico percebe essas insuficiências e desenvolve meios para mitigá-las. No plano normativo, solução interessante é a figura da ilicitude por abusos de direito ou por desvios de finalidade em atos administrativos. Ela permite que juízes examinem se as situações se encaixam ou não em padrões razoáveis de normalidade jurídica. É uma espécie de antibiótico legal para compensar insuficiências normativas e aumentar a eficácia do mundo jurídico.

Ao fazerem esse exame, os juízes só estão cumprindo as leis. O Supremo Tribunal Federal (STF) barrou a escolha, feita por Bolsonaro, de Alexandre Ramagem para o comando da Polícia Federal; entendeu, com bons indícios, que havia desvio de finalidade no ato de nomeação. O STF não inventou essa figura: desde 1965 a lei 4.717 atribui à Justiça a repressão de desvios de finalidade dos atos administrativos. Outro exemplo recente: o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) resolveu investigar Bolsonaro por possível abuso do poder econômico ou político contra a normalidade e legitimidade da futura eleição. Cumpriu o seu dever, já que essa atribuição lhe foi dada pela lei complementar 64, de 1990.

Uma crítica possível a esse tipo de solução legal é que, a título de coibir abusos ou desvios, os juízes podem acabar agindo com critérios políticos. A chance existe, pois não há pautas muito rígidas para saber o que é juridicamente normal ou anormal. Mesmo assim o Direito preferiu os juízes. Quem não gosta dessa solução que proponha a mudança da Constituição e das leis, por meios democráticos. Bolsonaro faz diferente: cercado de pessoas violentas, ameaça virar a mesa e livrar-se do Direito.

É claro que o Direito percebe os potenciais problemas de ficar empoderando juízes. Por isso, prevê também contrapartidas institucionais. Quem julga mandados de segurança contra atos do presidente da República e controla os possíveis desvios de finalidade de seus atos é o STF, nosso mais alto tribunal. Ele segue regras processuais e seus integrantes são escolhidos em um processo complexo, que lhes dá legitimidade para a intervenção. Quem cassa candidaturas presidenciais é o TSE, o mais alto tribunal eleitoral, com composição e processos também sofisticados.

Bolsonaro é um bem-sucedido político. Conseguiu se esgueirar de tudo, até chegar ao topo. Por notório saber profissional, desde o início do mandato presidencial conhecia os perigos de acabar alvejado juridicamente por desvios ou abusos, modalidades que mostrou conhecer. Isso explica sua violência contra o Supremo Tribunal Federal e a Justiça Eleitoral, em clara tentativa de fazer seus potenciais juízes se conterem, intimidados. Até agora não funcionou. Os ministros do STF e do TSE vêm mostrando tranquilidade, independência e disposição para exercer suas competências constitucionais e legais.

Bolsonaro sabe que, se depender do ministro Luis Roberto Barroso, o atual presidente do TSE, a estratégia vai continuar fracassando. Por isso, dirige contra ele as mais furiosas agressões verbais. Faz sentido. Além de legitimidade jurídica, Barroso tem visão, liderança e respeito do mundo jurídico. É um estadista das luzes. Quem vive de sombras faz bem em temê-lo. Quanto à democracia brasileira, ela pode contar não só com ele: há milhões de outras luzes em meio ao túnel que estamos percorrendo.

Link da publicação: https://blogs.oglobo.globo.com/fumus-boni-iuris/post/carlos-ari-sundfeld-por-que-bolsonaro-ataca-o-ministro-barroso.html

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Sobre o autor

Carlos Ari Sundfeld