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Direito Administrativo na era das instabilidades institucionais

Estamos distorcendo o direito administrativo, afetado por uma construção incremental alternativa, que, ao menos por enquanto, ocorre sem padrões muito claros

O Globo

A força da ideia de direito administrativo pode estar em xeque, em vários países. No Brasil também. Por quê?

As ações das administrações públicas são bem diversificadas. Temos autoridades ambientais e urbanísticas, SUS, bancos públicos, previdência social, arrecadação tributária, centros de assistência social, reguladores, fiscalização do trabalho, militares, policiais, rodovias, parques, museus, escolas e universidades públicas. Cada um dos segmentos se organiza e opera de modos distintos, com regras próprias.

Mesmo assim, quem trabalha diretamente na área jurídica, na gestão pública ou na política, aprendeu que haveria algo valioso, comum a todas essas organizações, operações e regras: a submissão ao direito administrativo, uma estrutura com padrões fundamentais de equilíbrio, que países maduros e democráticos tentam seguir há mais de um século.

Resumo aqui os padrões aparentemente mais importantes.

Legalidade administrativa. A administração pública nunca faz o que quer. As leis gerais, vindas dos representantes do povo, é que são o fundamento e limite de todas as ações administrativas.

Competências administrativas. Nenhum administrador público faz o que quer. O poder de cada um deles é específico, circunscrito, atribuído por normas gerais e limitado pelo conjunto de direitos subjetivos das pessoas.

Serviços públicos e sociais. As atividades estatais podem variar segundo a época e as opções políticas, mas será sempre do estado o dever de, nas condições decorrentes das leis, assegurar ao menos a existência de infraestrutura pública (como vias públicas e aeroportos) e serviços básicos (como segurança pública e previdência).

Controle judicial. Sem controle independente, a legalidade administrativa não tem como funcionar. Para isso existem os juízes. Quando provocados, eles podem e devem interferir nas ações administrativas e dar ordens aos administradores — desde que para corrigir e reprimir ilegalidades, não para agir como se fossem administradores.

Autonomia da administração pública. Legisladores e juízes não podem tudo. É dos administradores públicos, e não dos legisladores e juízes, a competência para, dentro das flexibilidades e alternativas abertas pelas leis, fazer a gestão ordinária e concreta das coisas públicas.

Direitos subjetivos públicos. A legalidade administrativa é um direito das pessoas. Estas podem pedir aos juízes que obriguem a administração pública a cumprir o que a lei lhes tiver garantido (exemplo: assistência à saúde ou respeito à liberdade de culto).

Tal como se formou no mundo contemporâneo, a partir sobretudo dos impulsos da Revolução Francesa no século 18, a ideia em si de direito administrativo nunca foi de simples miscelânea ou pandemônio de normas a respeito da ação administrativa, mas de um equilíbrio em torno daqueles padrões fundamentais, nos quais está sintetizada a essência das instituições públicas no estado de direito.

Se — e quanto — esses padrões têm sido seguidos no dia a dia, nos vários países que se declaram adeptos deles, é algo discutível. No Brasil, a dinâmica do poder nas localidades menores ou afastadas talvez se oriente mais por outros valores, apesar da evolução do campo público nas últimas décadas. De todo modo, em termos mais gerais, a ideia de direito administrativo tem sido afirmada entre nós como ideal, até por ter sido acolhida pelas normas básicas da Constituição de 1988, nosso documento político mais importante.

A pergunta que se tem de fazer é se, nos âmbitos das ações administrativa e controladora, tais padrões do direito administrativo ainda reúnem o consenso mínimo necessário, sobretudo entre agentes políticos mais relevantes (no plano federal, por exemplo) ou juridicamente mais sofisticados (a comunidade dos juízes e membros do Ministério Público).

Quanto à ação administrativa, para a legalidade realmente funcionar, não basta que existam normas jurídicas e aplicadores. Os mecanismos precisam de um mínimo de funcionalidade. A identificação do conteúdo das normas — e, assim, dos direitos, deveres e competências nelas previstos — tem de ser razoavelmente viável e passível de gerar certo nível de consenso.

No entanto, ao menos dois fatores têm afetado essa funcionalidade.

Em primeiro lugar, a inflação normativa, crescente em toda parte, e agravada no Brasil com a inflação constitucional. Ela aumenta muito as dificuldades para identificação dos conteúdos normativos, e, portanto, para sua interpretação e aplicação. A normatividade está cada vez mais nebulosa e intrincada. O sistema jurídico-tributário brasileiro é o exemplo que todos conhecem.

Em segundo lugar, vão se tornando menos prováveis decisões realmente finais e uniformes a esse respeito, em virtude do looping decisório, causado pela multiplicação de foros e rodadas de impugnação (vários ministérios públicos em disputa, mais tipos de ações judiciais, mais instâncias administrativas e judiciais, mais incidentes de revisão de decisões e entendimentos, tribunais de contas atuando muito além do controle de contas etc.). Em muitas matérias, a normatividade de cada situação concreta passou a viver em moto perpétuo. Também aqui o campo tributário é um caso a citar, juntamente com o previdenciário e vários outros; neles, a litigiosidade se repete e repete.

Como consequência, vão se instalando incertezas demais quanto ao conteúdo das normas, e essas incertezas já não podem mais ser contidas caso a caso, o que afeta a inteligibilidade da extensão jurídica das competências e direitos subjetivos públicos, bem como das prestações devidas por serviços públicos e sociais – três padrões tão significativos da ideia de direito administrativo.

Em si, a mera existência de conflitos nunca foi problema para a viabilidade global da ordem jurídica, mas o aumento constante no volume de conflitos e a postergação sucessiva de sua solução tendem a ser fatores relevantes de desequilíbrio. O risco é, aqui e ali, acolá e mais adiante, as administrações e os administradores públicos irem fazendo o que quiserem, deixando a ordem jurídica de reunir as qualidades necessárias para dirigir de fato as ações. Seria, em se considerando o ideal de direito administrativo, um cenário de instabilidade institucional sistêmica por falta de normatividade na ação administrativa.

Quanto à ação controladora, uma instigante inflexão vem ocorrendo no escopo das intervenções de juízes e outros controladores (como os tribunais de contas) em assuntos de administração pública. Mesmo sob algumas críticas fortes, agentes políticos e sociedade em geral vêm cada vez recorrendo mais a juízes e outros controladores para resolver pretensões e arbitrar conflitos cuja solução vai muito além da consideração das normas jurídicas. Há não só um impressionante aumento de demanda sobre os controladores, como, em função da nova organização social (urbanização, universalização da informação, democratização, etc.), também um giro qualitativo no que se pede a eles. Como água mole em pedra dura, essas provocações vêm minando a tradicional cultura desses controladores de não ultrapassar as questões jurídicas e não comprometer a autonomia dos administradores.

Em algumas áreas, o controle hoje é bem menos de legalidade do que já foi, e se aproxima mais e mais de uma espécie de administração pública alternativa a cargo de controladores independentes. Estes passam a poder fazer o que quiserem, reflexamente diminuindo a autonomia da administração pública. No Brasil, um bom exemplo é a atuação judicial na distribuição de medicamentos no âmbito do SUS, com pouco a ver com aplicação de normas jurídicas. Aqui, a instabilidade institucional corre por conta do desapego normativo na ação controladora.

Em função desses fenômenos — queda na funcionalidade das normas jurídicas públicas e expansão dos parâmetros de decisão dos controladores para além das normas — o direito público em si, ou o arquétipo pensado com base naqueles padrões fundamentais, está perdendo importância.

Soa paradoxal, porque nunca se argumentou tanto em linguagem jurídica, nem houve tantos profissionais do direito tomando decisões públicas. Mas, no trato de questões públicas, juristas falando em juridiquês não é o bastante para as normas jurídicas importarem de fato.

Essas mudanças todas vão criando uma nova forma de o estado se organizar, decidir e atuar, eventualmente com bastante espaço para os controles cruzados — o que tem seus atrativos do ponto de vista da luta democrática — e também para a falação em português jurídico, o que garante a importância política da classe dos juristas. Essa forma de estado não incorpora exatamente aqueles padrões de equilíbrio sintetizados na ideia tradicional de direito administrativo.

Se, pelo ângulo do bem estar geral, estamos melhorando ou piorando, é difícil de avaliar por enquanto. Mas o ponto é que estamos distorcendo o direito administrativo — um arquétipo claro, embora talvez fantasioso e ineficaz na prática — afetado por uma construção incremental alternativa, que, ao menos por enquanto, ocorre sem padrões muito claros. Nesse sentido, considerado o plano das ideias, vivemos instabilidades institucionais. E, no plano político pragmático, as coisas vão se tornando mais difíceis de prever, por conta de sacudidas e mudanças que não parecem estar propriamente nas mãos do direito – conquanto possam estar nas de juristas.

Quais serão o rosto, a possível eficácia e os riscos desse direito administrativo do futuro, baseado em padrões tão diferentes da ideia original?

Link da publicação: https://oglobo.globo.com/blogs/fumus-boni-iuris/post/2023/03/carlos-ari-sundfeld-direito-administrativo-na-era-das-instabilidades-institucionais.ghtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Carlos Ari Sundfeld