Entrevistas

Uma piada sem graça

Projeções oficiais me fariam rir, se não vivesse aqui

Veja

A primeira piada de economista que ouvi, ainda calouro, relatava a desventura de três náufragos: um físico, um químico e um economista, na proverbial ilha deserta, tendo como alimento apenas as latas de comida que salvaram do navio. O problema, claro, era como abrir as latas para evitar a morte por inanição. O físico propôs o uso de pedras, que em alguns meses abririam as latas. “Tarde demais”, disse o químico, que aconselhou o uso de água salgada para antecipar a abertura da lata, mas por pequena margem. Ao que o economista, insatisfeito, sugeriu: “Supondo que tivéssemos um abridor de latas, comeríamos agora mesmo”.

Não é muito engraçada, confesso, mas foi a primeira coisa que me passou pela cabeça ao ler o recém-publicado Relatório de Projeções Fiscais, preparado pela Secretaria do Tesouro Nacional, trazendo as previsões para o decênio 2024-2033. Como hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude, o relatório manteve a ficção de déficit zero em 2024, embora até os tijolos da STN saibam que a mudança da meta para este ano é questão de tempo; não agora em março, mas provavelmente em maio ou julho.

Não é esse, porém, o maior problema. Em seu “cenário base”, apesar de supor crescimento robusto do Produto Interno Bruto, na casa de 2,5% ao ano, inflação próxima à meta a partir de 2025 e consequente redução da Selic para 7% ao ano em 2026, a STN projeta déficits em 2025 e 2026, equivalentes a respectivamente 0,5% e 0,4% do PIB. Já a meta fiscal para esses anos requer superávits de 0,25% e 0,5% do PIB.

Daí a adoção de um outro cenário, dito “de referência”, que presume receitas adicionais equivalentes a 1% do PIB em 2025 (126 bilhões de reais) e 1,3% do PIB em 2026 (172 bilhões), além de um tanto mais em 2027 e 2028. Neste caso teríamos resultados fiscais positivos e próximos à meta em 2025 e 2026.

“O Tesouro prevê receitas crescentes e dívida caindo até 2033. Falta combinar com os russos do Planalto”

Mais importante, a dívida do governo, que no cenário base cresceria ininterruptamente até 80% do PIB em 2026, se estabilizaria já em 2025 perto de 78% do PIB, para então entrar em trajetória de queda persistente até 2033.

Vale dizer, o Tesouro Nacional recorreu ao velho abridor de latas para “resolver” nosso problema de endividamento crescente. Não conseguimos cortar gastos? Então presumimos que — de alguma forma — as receitas aumentarão para cobrir o estrago e evitar que a dívida siga em trajetória ascendente.

E noto que, além das receitas mágicas, as projeções da STN também apelam a Hog­warts no que diz respeito à evolução das despesas. Sendo obrigadas a respeitar por um lado a trajetória imposta aos gastos pelo “novo arcabouço fiscal” (que limita seu crescimento a 2,5% ao ano além da inflação) e por outro a expansão dos chamados gastos obrigatórios (previdência, funcionalismo, Bolsa-­Família, etc.) na casa de 2,7% ao ano, a STN prevê redução sem precedentes das despesas discricionárias: de 1,7% do PIB a 0,7% entre 2024 e 2033.

Falta combinar com os russos da Esplanada, principalmente os do Palácio do Planalto.

Pensando bem, o principal motivo de não ver muita graça na piada dos náufragos é exatamente associá-la ao país em que vivo.

Link da publicação: https://veja.abril.com.br/coluna/alexandre-schwartsman/uma-piada-sem-graca/

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

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Alexandre Schwartsman