Denis Mizne aponta ações para reverter o grave quadro educacional pós-pandemia, com 70% dos alunos sem ler e escrever até o final do 2º ano
Folha
Imagine uma criança brasileira sentada em uma aula na China. Ela olha para a lousa, para os livros, e vê ideogramas que não é capaz de entender.
É com essa metáfora que Denis Mizne, 47, diretor-executivo da Fundação Lemann, uma das principais organizações não governamentais do Brasil na área da educação, fala do grave quadro das escolas brasileiras no pós-pandemia e pós-Bolsonaro, com 70% dos estudantes não alfabetizados até o final do 2º ano, época considerada ideal para que o aprendizado se desenvolva bem.
Diante de aulas e mais aulas que não compreendem, “imagine a frustração dessas crianças”, diz Mizne. Esses alunos seguem na escola, aos trancos e barrancos, e boa parte acaba abandonando o ensino lá pelo 8º, 9º ano do fundamental e principalmente no 1º ano do ensino médio.
Nesta entrevista à Folha, Mizne fala de um programa para alavancar a alfabetização que a Fundação Lemann apoia em 17 estados e do compromisso que a organização assumiu de erradicar o analfabetismo escolar até o final desta década. “É viável”, afirma.
Ele também avalia o primeiro ano das gestões, na educação, do presidente Lula (“Sempre há o que melhorar, mas é incomparável com Bolsonaro”) e do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (“Ainda conturbada, com muita energia mas pouco diálogo”).
Um ano após as eleições, como o sr. avalia o impacto da mudança do governo Bolsonaro para a gestão de Lula na educação?
Sempre vamos encontrar pontos a serem melhorados, mas é incomparável. Voltamos a ter um MEC. Com Bolsonaro, existia a visão de que o MEC não deveria ter um papel. E justamente na pandemia. Foi um momento de fragilidade enorme, especialmente para os estudantes mais vulneráveis. Com Lula, temos um MEC que prioriza a educação básica, com o compromisso com a alfabetização, o programa das escolas conectadas, a ampliação do ensino em tempo integral, a recuperação de aprendizagem e a rediscussão do ensino médio. É um governo técnico na educação, que conseguiu colocar uma agenda com prioridades que fazem sentido, dialoga com estados, municípios e setores da educação. Há desafios, polêmicas, claro, a educação não é uma área fácil.
O programa de alfabetização, alardeado por Lula, não teve investimento de nem um centavo ainda, como a Folha mostrou. Considerando que a alfabetização é pilar da Fundação Lemann, como avalia essa questão?
O fato de o governo ter lançado o programa é uma ótima notícia, porque o MEC é necessário nessa área, com investimento, orientação e avaliação da alfabetização. Mas precisa gastar o dinheiro, botar a máquina para rodar. Política sem orçamento é discurso. Entendo que esse governo pegou o MEC desestruturado, houve um tempo para reconstrução, mas é preciso executar o orçamento. Estou confiante que isso ocorrerá até o final do ano.
Como o sr. vê o cenário da alfabetização no país atualmente?
A escola pública brasileira ainda produz um número grande de crianças analfabetas, especialmente as mais pobres, negras e da região Norte e de parte do Nordeste. Antes da pandemia, metade das crianças estava alfabetizada ao final do 2º ano, que é a idade ideal, conforme a BNCC [Base Nacional Comum Curricular, que define as diretrizes da educação no país].
Com a pandemia, esse número caiu para 30%. Por isso a alfabetização tem que ser prioridade. Não tem como pensar em outros conteúdos se a criança não sabe ler e escrever, interpretar um texto e se expressar por meio da escrita.
Apesar dessa taxa de analfabetismo, praticamente todas as crianças seguem na escola. Vão começar a abandonar a escola lá pelo 8º, 9º ano e principalmente no 1º do ensino médio. E, para uma criança analfabeta, é como se a aula fosse na China. Ela olha para a lousa, para os livros, e vê um ideograma que não é capaz de entender. Imagine a frustração. Alfabetizar essa criança é um salto grande para o país e não é ciência de foguete, acontece todos os dias nas salas de aula. Quando não acontece é porque estamos errando gravemente.
Como vocês atuam, na prática, para melhorar a alfabetização nesses estados?
A Aliança Pela Alfabetização, formada pela Fundação Lemann, pelo Instituto Natura e pela Co-Impact, e apoiada por um conjunto de outras organizações, tem o compromisso assumido de aportar um total de R$ 250 milhões em até cinco anos com foco na erradicação do analfabetismo de crianças no Brasil. Esse acordo foi iniciado em 2022. Nós nos comprometemos a erradicar o analfabetismo escolar até o final desta década. É viável.
Estamos levando para 17 estados um programa baseado na experiência do Ceará, em que os governos colocam a alfabetização como prioridade. A Associação Bem Comum, organização de profissionais do Ceará que têm a experiência nesse processo, aporta a expertise técnica. Entramos com apoio na formação dos professores e na produção dos materiais didáticos e da avaliação de fluência. Gradativamente os estados vão assumindo sozinhos esse processo. Os que estão no programa voltaram ao nível do pré-pandemia em um ano. Neste ano, vamos ver se realmente estão em uma trajetória ascendente. Estou otimista. Com o compromisso do MEC vai andar ainda mais rápido.
Quais são as alavancas que fazem a alfabetização acontecer?
São seis: formação dos professores, material didático, construção de um sistema de avaliação da fluência dos alunos, prêmios para as escolas com os melhores desempenhos (E a escola só ganha uma parte do prêmio quando ajuda uma outra a progredir), incentivo tributário (Parte do ICMS é destinada a municípios com esforços de alfabetização) e governança (regime de cooperação entre estados, municípios, além de outros parceiros).
Em São Paulo, após quase três décadas de PSDB, como o sr. avalia os novos rumos na educação?
É uma gestão ainda conturbada. Começou com muita energia e pouco diálogo, e isso acabou gerando várias idas e vindas, como o que houve com o material didático [o governo Tarcísio decidiu acabar com livros didáticos impressos e, com a reação negativa, teve que recuar]. Isso é ruim para a educação. É preciso fazer as coisas com mais estudo e diálogo com os professores e a sociedade.
O que é positivo é o olhar que essa gestão tem para a recuperação. [Alguns criticam:] “Ah, mas vai priorizar matemática!”. Talvez seja mesmo necessário agora. Tem que estender mesmo o tempo de aula e oferecer recursos tecnológicos para os professores. O que não é positivo é achar que a tecnologia vai resolver tudo, porque não vai. Vimos na pandemia também que há problemas na infraestrutura. Primeiro o governo deveria garantir acesso à internet de qualidade e equipamentos nas escolas. Só depois é que deveria entrar com plataformas de ensino de forma complementar, sem acabar com os livros impressos.
O que pode ser feito para blindar a educação do calor político, para que seja tratada como uma questão de Estado e não de cada governo?
A educação deveria ser mais blindada dos arroubos. Alguns mecanismos criados no país ajudam a atenuar isso, como o Sistema de Avaliação Nacional, a Base Nacional Comum Curricular, o Fundeb [Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação, que define o repasse de recursos para a educação]. Agora está em discussão no Congresso o Sistema Nacional de Educação [organiza as responsabilidades das esferas nacional, estadual e municipal na educação e as formas de cooperação entre elas].
Cada vez que se tenta fazer as coisas por decreto, de forma corrida, não dá certo. O ensino médio [aprovado por um decreto no governo Temer] é um exemplo. É preciso resistir ao arroubo, à canetada.
Considerando os impactos da pandemia e do apagão do MEC sob Bolsonaro, além das mudanças abruptas na educação nas esferas federal e estadual, que papel tem a atuação da sociedade civil?
Na pandemia, sem a atuação do MEC, houve um movimento de organização da sociedade civil para responder a essa lacuna, garantir apoio aos alunos, e isso era muito bem visto pela sociedade. Ao mesmo tempo, cresceu uma visão da extrema direita de desconfiança, com ataques à atuação da sociedade civil. Com Lula, voltamos a atuar com um governo muito mais aberto à sociedade civil.
Mas existem ainda alguns campos que criminalizam o aporte técnico e a influência da sociedade civil em políticas educacionais. São visões conspiratórias, como “As fundações querem privatizar a educação pública”. Será que não fica claro que o nosso compromisso é com a educação pública?
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2023/12/brasil-pode-alfabetizar-todas-as-criancas-ate-2030-diz-diretor-da-fundacao-lemann.shtml
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