Estado de São Paulo
Gherardo Colombo, ex-magistrado italiano, cita exemplo de colaborador da Justiça no campo da máfia e do terrorismo
Vinte e cinco anos depois de Mãos Limpas, um condenado por corrupção vai para a cadeia na Itália? Cumpria pena atrás das grades?
Muitos foram os condenados. Alguns foram para a cadeia. Mas muitos empresários – devo dizer que não sei se o nosso sistema corresponde ao de vocês – fizeram acordos e conseguiram a suspensão condicional da pena. E, portanto, não foram para a cadeia. Depois, progressivamente, nossos legisladores – nossos processos e investigações duraram 13 anos – modificaram alguns crimes, como o de falsificação de balanços e o favorecimento administrativo, reduzindo o prazo de prescrição; modificaram os valores das provas, retirando o valor de atos processuais que antes tinham valor como prova, razões pelas quais depois o número de condenações diminuiu bastante.
Quanto caiu o número das condenações caíram na Itália?
É difícil de dizer. Aqui em Milão, posso fazer um cálculo aproximado desse fenômeno. Nós pedimos que fossem julgadas cerca de 3,7 mil pessoas. Dessas, foram absolvidos 20%, cerca de 750. Cerca de 40% dos casos prescreveram, ou seja, cerca de 1.500. Das outras 1,5 mil, cerca de mil fizeram um algum acordo. Esse é um cálculo que faço de memória. Foram condenadas cerca de 700 pessoas, sendo que alguns ainda puderam gozar da suspensão condicional da pena.
E quantos desses foram condenados a até 3 anos e, portanto, puderam fazer serviços sociais em vez de ir para a cadeia?
Eu creio que uma grande parte. A maioria. Além disso, na Itália, existe a possibilidade para pessoas particularmente idosas de cumprir a pena em prisão domiciliar. Para cárcere foram poucas pessoas. Sobretudo em razão das reformas legislativas que um pouco restringiram os crimes e um pouco reduziram o valor das provas.
O senhor acredita que um acusado de corrupção deve ser mantido em prisão preventiva na cadeia?
Bem, eu pelo que compreendo, e não conheço completamente o sistema processual brasileiro, porém, chegam notícias, e se lê e deve levar em consideração o meu nível de informação sobre o sistema brasileiro. Porém, o nosso sistema, o sistema italiano, prevê que a custódia cautelar seja possível somente para evitar o perigo de fuga, o perigo de destruição de provas ou perigo de reiteração do crime do mesmo tipo. Ora, não existe na Itália um sistema para a corrupção similar ao vosso da delação premiada. Não existe. A delação premiada é um termo que não se pode usar. Nós falamos de colabores de Justiça no campo da Máfia e do terrorismo. A Máfia e o terrorismo são tratados geralmente de um modo muito particular. Não se pode pôr na cadeia uma pessoa para fazê-la falar. Ok? Para contar fatos dos outros. Ainda que esse seja uma distinção muito sutil porque, se uma pessoa se torna não confiável ao sistema de corrupção do qual ela provém, então não se justifica mais a custódia cautelar. Porque não há mais o risco de reincidência, pois os outros não confiam mais nela e não há perigo de fuga porque já confessou e, geralmente, quem resolve contar o que sabe recebe normalmente uma pena que não é grave. E não há mais risco de destruição de provas, pois a prova já foi feita. E em um sistema (delação) no qual não basta que as pessoas sejam corretas, mas é sempre necessário esse, para a sentença, para a condenação, é sempre necessário que existam também comprovações do que foi dito, como a prova da passagem do dinheiro por meio financeiro e assim por diante. E isso vale também para a custódia cautelar. Em relação às pessoas contra quem foram aplicadas a custódia cautelar na Itália por parte dos magistrados, há uma outra particularidade que, para mim, é importante, e torna impossível fazer paralelos entre Mãos Limpas e Lava Jato. Existe uma diferença notável sobre o perfil do controle dos magistrados. Na Itália existe o Ministério Público que faz a investigação. Existe o juiz da investigação preliminar que controla a atividade do Ministério Público e que emite todos os procedimentos que restringem em qualquer medida a liberdade como a custódia cautelar na cadeia, as interceptações telefônicas e por aí vai. Quando a investigação termina, um outro juiz, um juiz para a audiência preliminar, decide se vai mandar a julgamento o investigado ou mesmo se recusa a abertura do processo. Mas não é ele que condena porque a condenação só pode ser emitida por um tribunal, que um juízo diferente e para os casos de corrupção é o juízo de um colegiado, composto por três pessoas.
E por isso alguns advogados brasileiros dizem que aqui no Brasil o juiz tem um papel de super-homem no processo?
Notei que o juiz que fez a investigação no processo contra Lula (Sérgio Moro) era o mesmo que fez a sentença e isso me deixou um pouco surpreso porque aqui na Itália isso não poderia acontecer.
Um sistema assim no Judiciário, como seria julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos?
Eu tenho dificuldade para dizer-lhe. Posso dizer que na Itália, o juiz que faz a investigação, não podia condenar nem mesmo com o Código de Processo Penal que era de 1930. O juiz de então podia somente decidir se aceitava ou não a denúncia. Se decidisse pela abertura do processo, o processo era feito por outro. O articulo 6 da Convenção das Salvaguarda dos Direitos do Homem para o Conselho Europa diz que cada pessoa tem direito que sua causa seja examinada imparcialmente, publicamente e em um tempo razoável por um tribunal independente e imparcial constituído por meio de lei que decidirá etc. No caso, se fala somente de um tribunal independente e imparcial. Mas aquele que faz a investigação pode em alguma medida ser influenciado por aquilo que descobriu, tanto que, na Itália, o juiz que decide não pode conhecer o conteúdo dos atos processuais senão por meio do debate no tribunal. Quer dizer que o juiz decide baseado no que acontece diante dele. Outra coisa que existe em Itália: um juiz tem a obrigação de abster-se de antecipar um juízo, ou seja, dizer o que pensa a propósito do processo. Não sei se isso existe. Nós tivemos um grande cuidado além do que estava previsto no Código de Processo Penal na Itália. Durante o curso de Mãos Limpas sempre evitamos de nos exprimir sobre a situação de réus em particular. Falávamos da corrupção, mas sempre evitamos falando sobre a posição dos denunciados, mesmo trabalhando como procurador e não como juiz (na Itália o Ministério Público faz parte da magistratura).
E mesmo durante as entrevistas coletivas?
Eu nunca falei sobre a situação de um acusado, mas somente sobre atos judiciários. Eu pessoalmente evito falar de pessoas que foram meus acusados, mesmo depois do processo. Quando vou às escolas, eu procuro evitar falar de acusados, mesmo depois de passados dez anos, 15 anos. É uma questão que, pelo que me diz respeito, que vai além do texto legal.
Todo caso, como Mãos Limpas, deixa no povo certos símbolos e, quando se pensa em corrupção na política, se pensa nos símbolos desses escândalos. Mãos Limpas tem alguns símbolos, como os ex-primeiros-ministros Arnaldo Forlani e Bettino Craxi. São dois importantes políticos italianos que foram cumprir a pena na prisão. Forlani foi fazer trabalho social e Craxi fugiu para a Tunísia. Quando esses personagens conseguem escapar, não existe o perigo que o povo pense que os juízes fizeram muito barulho por nada?
Isso é o que penso mesmo eu. Já são dez anos que me demiti da magistratura (era então juiz da Corte Suprema da Itália) e me demiti porque, para mim, em um país em que a corrupção é difusa, como é difundida na Itália, é impossível afrontá-la com o instrumento do processo penal. Não se consegue. A um certo ponto, nós começávamos e as provas nos levavam para as pessoas que estavam no alto. Os cidadãos comuns protestavam contra eles e, depois, pouco a pouco, conforme as investigações prosseguiram, as provas nos levaram em direção à corrupção das pessoas comuns, o fiscal da prefeitura que fez compras de graça e em troca não fiscaliza a balança dos frios na padaria, e o inspetor do trabalho que por alguns trocados não verifica se no canteiro de obra há cintos de segurança e capacetes para os trabalhadores e os enfermeiros por outros trocados avisa à funerária quando morre alguém no hospital para que ela chegue primeiro ao lugar para fazer o funeral ou agente da Receita Federal que não toma conhecimento da regularidade, não da contabilidade das grandes empresas, mas das pequena. Na Itália, as pessoas começaram a perguntar: ‘Mas esses caras, o que querem? Querem investigar o que eu estou fazendo? De fato, Mãos Limpas terminou antes que fosse descoberta toda a corrupção. Descobrimos só 5%, 10%, 20%. Porque é toda uma série de relações, um sistema e, em um certo momento, as pessoas não foram para a cadeia. Mas não foram para a cadeia porque no Parlamento foram mudadas as leis. E depois as pessoas votaram em quem havia mudado as leis.
Em algum momento o senhor pensou que havia se transformado em um moralista radical?
Eu, após quatro meses que havia começado as investigações, em julho de 1992, lancei uma proposta em uma entrevista de rádio que era: quem conta como as coisas aconteceram, restitui o dinheiro e se afasta por anos da vida pública não deve ir para a prisão. O meu comportamento era absolutamente laico. A corrupção é um crime, ela causa danos e na Itália existe um Código Penal e um Código de Processo Penal. A lei diz que é crime e a ação penal é obrigatória, nós somos obrigados a investigar todas as vezes que chegam uma notícia de crime. Os juízes e também os procuradores devem cultivar o senso de independência, tornando-se capazes de ser independentes de si mesmo. Isto é, as ideias pessoais não ter nenhuma relação com os fatos que ele está investigando, se é um procurador, ou julgando, se é um juiz. Encontramos provas de propina que foram recebidas na Itália por quem estava no governo e por quem estava na oposição.
Pelo que o senhor me disse, o senhor seria favorável ao uso dos colaboradores de Justiça nos casos de corrupção?
Eu tenho muitas reservas com os colaboradores de Justiça. Para que não se cometam crimes, é preciso que exista entre o cidadão e o Estado a confiança. E, para mim, cooperar – eu prometo uma pena menor se você conta quem são seus comparsas – é uma coisa que, em vez de promover confiança, de algum modo, você a tolhe. Creio que algumas vezes se cometem crimes realmente graves, como no caso da máfia, que dissolve crianças no ácido, e por isso, algumas vezes, é necessário recorrer a instrumentos que, infelizmente, em si não são educativos, que não educam a cidadania. Deve ser uma medida (colaboradores de Justiça) limitadíssima e, por isso, eu não a introduziria no campo da corrupção, mas existem muitas pessoas que pensam de modo contrário. Mas, em vez disso, há uma coisa que se precisa fazer aquilo que eu lhe disse antes: um fenômeno tão espalhado como a corrupção na Itália não pode ser combatido com o processo penal. É necessária outra coisa. Prometer a alguém a redução de pena se fala, essa medida está no processos penal, mas não serve ao processo penal. O que é necessário fazer é operar a dois campos, que são a educação e a prevenção. Na Itália, espero que se for possível, ir adiante do ponto desses pontos de vista. Eu acredito que a situação mudará. Para prevenir a corrupção são necessárias duas coisas: que as empresas adotem procedimentos para todas as suas atividades, pois, quando há um procedimento de modo que tudo deixe traços tudo se torna transparente, pois tudo se torna verificável, como quem tomou cada decisão, por que a tomou, por quais motivos. E esse é o segundo ponto de vista: a transparência. E que tudo isso seja público. Do ponto de visto educativo é necessário para acompanhar as pessoas para saber que a corrupção faz mal até para quem a comete, pois desregula as instituições.
Evidentemente que nesse meio tempo é necessário descobrir quem participa da corrupção, mas não porque alguém colaborou, mas porque o contexto social no qual as pessoas se encontram se rebela e reage, quem assiste a um crime de corrupção denuncie. No caso de corrupção é difícil que as pessoas aceitem testemunhar.
Atualmente, os políticos atualmente têm mais consciência das implicações legais no combate à corrupção. Hoje, estudam para que não caiam em armadilhas em leis feitas por eles. Por isso, o combate à corrupção pela via legislativa se tornou mais difícil?
Se faz muito mais do que antes por via legislativa do ponto de vista da prevenção. Pela via legislativa aumentaram até a pena da corrupção, o que é inútil se não se consegue identificar os corruptos. Sobre o perfil da prevenção, algumas coisas se fazem. Seria necessário, porém, conseguir pô-las em prática.
O que os cidadãos podem fazer para combater a corrupção?
Os cidadãos devem marginalizar a corrupção, colocá-la de lado em seu confronto. Existem outros aspectos. A corrupção das altas esferas, quando existe, é onde a corrupção serve para se enriquecer injustamente. Nas esferas baixas a corrupção às vezes serve para sobreviver. Para mim, um sistema importante, que não é feito pelos cidadãos, mas pelas instituições: de conseguir evitar que as pessoas recorram à transgressão, ou seja, a lei não serve para elas porque, de outra forma, não poderiam sobreviver. Eu me recordo a primeira vez que fui ao Brasil em 1993. Dois dias depois, no Rio, a polícia havia matado cinco crianças na Igreja da Candelária. Eu fui ao lugar e vi as marcas das pessoas mortas e conversando com os seus compatriotas e alguém me disse que o salário de um policial equivalia a 25 garrafas de cerveja. Entende como se torna fácil que depois uma pessoa chegue até mesmo a matar outras pessoas porque alguém me promete um pagamento? Seria necessário resolver esse problema. O que os cidadãos podem fazer? Podem se rebelar contra a corrupção, isto é, dizer: ‘Eu não concordo’. Isso é uma coisa importante. Para mim, se muda também pelo testemunho que se dá: fazendo ver que há um outro caminho.
A política italiana hoje é mais limpa do que nos tempos da Primeira República?
Eu penso que o nível de corrupção na Itália seja mais ou menos o mesmo. Nós encontramos pessoas corruptas em toda parte. Mas, para mim, é difícil dizer se a política de hoje seja tão corrupta do ponto de vista do pagamento de mesadas quanto era então. Para mim, a corrupção hoje toma caminhos diferentes. Existem pessoas que uma vez tinham necessidade de pagar para obter beneficio da política e, agora, talvez, são tão próximas da política que não têm mais necessidade de pagar. Então, a corrupção era muito ligada ao financiamento ilícito dos partidos políticos. Hoje não é mais assim. Se existe o financiamento ilícito, ele passa por outro caminho. Tudo se modificou. É muito difícil responder a essa pergunta.
Mas os contratos ainda hoje são fraudados?
Às vezes isso é descoberto, situações assim. O Parlamento italiano continua a fazer leis sobre as licitações públicas. Eu não sei até que ponto elas servem, pois tornam às vezes muito difícil gerir a administração pública. Faz dez anos que não sou mais juiz, são pelo menos 12 anos que não faço mais investigações, baseio-me no que emerge na imprensa. Eu penso que sobretudo a corrupção das pessoas comuns continua.
Marcelo Godoy