CDPP na Mídia

Auxílio Brasil: avaliação do desenho e possíveis impactos

Vinícius Botelho, Fernado Veloso e Marcos Mendes

Jota (publicado em 14/12/2021)

O presente texto tem por objetivo analisar o desenho do Auxílio Brasil, aprovado pelo Congresso, comparando-o com o Bolsa Família e com o Programa de Responsabilidade Social, que elaboramos a convite do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP) em setembro de 2020.[1]

Analisa-se, em conjunto, o conteúdo do Projeto de Lei de Conversão 26/2021, que deu forma final à Medida Provisória 1061/21, que instituiu os programas Auxílio Brasil e Alimenta Brasil; o Decreto 10.852/2021, que regulamentou a MP 1061/2021; e a MP 1076/2021, que instituiu o “benefício extraordinário” visando fixar um valor mínimo de R$ 400 por família.

O Auxílio Brasil está dividido em dois grandes blocos. No primeiro, há um conjunto de benefícios de transferência direta de renda, chamados de “benefícios financeiros” (art. 4º do PLV 26/2021). No segundo, há mecanismos de “incentivo ao esforço individual e à emancipação produtiva” (art. 5º do PLV 26/2021). Além disso, a mesma Medida Provisória propôs a criação do programa Alimenta Brasil, voltado à distribuição de alimentos à população de baixa renda (arts. 30 a 41).

Com relação aos “benefícios financeiros”, constata-se que seu desenho não difere significativamente do que se praticava no Bolsa Família, havendo uma salutar simplificação e aumento de foco nas crianças até 3 anos. O reajuste das linhas de pobreza ficou um pouco abaixo da correção do valor original pelo INPC e não houve alterações relevantes no Cadastro Único para Políticas Sociais do Governo Federal (Cadastro Único), no conceito de família ou no conceito de renda familiar utilizados.

Não obstante, a fixação de um valor mínimo de R$ 400 para o benefício familiar gera vários problemas. As informações da renda familiar, contidas no Cadastro Único, deixam de ser usadas para dosar o montante do benefício pago a cada família. Perde-se o foco nos mais pobres e aumenta o custo do programa. Também aumenta o incentivo para que famílias acima da linha de pobreza informem renda inferior ao valor da sua renda real, para acessar o benefício.

Foi estabelecido um benefício de transição, para que nenhuma família receba do Auxílio Brasil menos do que recebia do Bolsa Família. Contudo, considerou-se como renda recebida do Bolsa Família os montantes pagos a título de Auxílio Emergencial, com valores maiores do que aqueles pagos no âmbito do Bolsa Família. Isso tem o potencial de perpetuar, para algumas famílias, a concessão do Auxílio Emergencial, que sempre teve desenho e inspiração eminentemente temporários.

Manteve-se a regra de pagar o benefício apenas a quem está abaixo das linhas de pobreza e pobreza extrema, diferenciando o tratamento oferecido pela rede de proteção social a famílias que são similares: uma família que tenha renda levemente superior à linha de corte não tem direito a qualquer benefício, enquanto uma família com renda levemente inferior à linha de corte tem acesso às transferências do programa. Na prática, enquanto vigorar o benefício mínimo de R$ 400, a família levemente abaixo da linha da pobreza receberá R$ 400 de benefício, enquanto a outra não recebe nada.

Houve, durante a tramitação, a decisão de “acabar com a fila” de espera pelo benefício. Na última hora, a redação do Projeto de Lei de Conversão foi alterada para permitir ao governo limitar o número de benefícios em função das restrições orçamentárias. Porém, a adaptação da redação deixa margem para judicialização do tema, visando o pagamento a todos que têm direito. Nossa análise mostra que isso gera distorções no programa e fragiliza sua capacidade de focalizar a assistência nos mais pobres.

O Auxílio Brasil mantém o espírito do Bolsa Família de focalizar a atenção nos mais pobres, porém o texto final aprovado aponta que ele seria apenas uma transição para uma renda básica universal e, portanto, paga a todos os cidadãos. Argumentamos ao longo do texto em favor de uma política mais focalizada, apontando os custos e riscos de se caminhar em direção ao universalismo, retomando argumentos que já havíamos exposto na ocasião da apresentação do Programa de Responsabilidade Social.

Perdeu-se, também, a oportunidade de simplificar e agilizar as inscrições e atualizações do Cadastro Único, que viabilizariam informações mais acuradas sobre o perfil da pobreza e liberariam servidores vinculados à gestão municipal, hoje encarregados de atividades de cadastramento, para realizar busca ativa da população carente desassistida.

Com relação aos mecanismos de “incentivo ao esforço individual e à emancipação produtiva”, o “Auxílio Criança Cidadã” inova ao financiar creches privadas para as crianças de baixa renda. O bom resultado, contudo, dependerá dos valores pagos e da supervisão das instituições participantes. O Auxílio de Inclusão Produtiva Rural parece não passar de um adicional à transferência de renda, pois se apoia em uma contrapartida de doação de alimentos pelos beneficiários que dificilmente será exequível. O Auxílio Inclusão Produtiva Urbana tomou a forma de uma poupança, porém com limitações que obstruem sua eficácia e ampliam distorções. Também chama a atenção um foco excessivo na proteção do trabalho formal, que já dispõe dos benefícios associados à seguridade social, deixando os trabalhadores informais à margem da estrutura de benefícios proposta.

Por fim, é preciso registrar que o conjunto de regras criadas encerra elevado risco fiscal. Haverá forte pressão por gastos decorrente da combinação de: fixação de valor mínimo para o benefício; tendência ao atendimento universal; elevação das linhas de pobreza e, consequentemente, da população elegível; possibilidade de contestação judicial quanto à existência de fila para entrada no programa; e o custo dos diversos “incentivos ao esforço individual e à emancipação”.

O Poder Executivo enviou ofício ao Congresso Nacional propondo acréscimo de R$ 54,6 bilhões ao programa. Tendo em vista que ele já conta com uma dotação de R$ 34,7 bilhões, o gasto previsto é de, pelo menos, R$ 89,3 bilhões. Argumentamos no texto que esse montante pode ultrapassar R$ 96 bilhões. Mesmo que se cumpra a previsão do governo, haverá um aumento de 157% na despesa com o Auxílio Brasil. Esse valor não só sobrecarrega as contas públicas como poderia ser menor, com o mesmo impacto sobre a pobreza, como mostramos no Programa de Responsabilidade Social.

Análise do Auxílio Brasil

Benefícios financeiros (art. 4º)

Os benefícios financeiros estipulados pelo art. 4º do PLV 26/2021 correspondem àqueles hoje pagos pelo Bolsa Família, com algumas alterações. Eles foram divididos em quatro modalidades:

  1. Benefício de primeira infância: R$ 130 por criança de até 36 meses, para famílias em situação de pobreza ou pobreza extrema
  2. Benefício composição familiar: R$ 65 por gestante, nutriz ou pessoa entre 3 e 21 anos, em famílias em situação de pobreza ou pobreza extrema
  3. Benefício de superação de extrema pobreza: pago às famílias que, mesmo recebendo os benefícios acima, ainda fiquem com uma renda per capita inferior à linha de extrema pobreza (fixada em R$ 105 per capita por mês)
  4. Benefício compensatório de transição: para garantir que nenhuma família que recebia o Bolsa Família receberá valor menor no âmbito do novo programa

O que mudou em relação ao Bolsa Família

Argumentos que apontavam o “fim do Bolsa Família” não se sustentam. As mudanças promoveram uma simplificação nos critérios do Bolsa Família que, com o tempo, foram se tornando complexos e sobrepostos.

A primeira alteração relevante na estrutura de benefícios ocorreu com a extinção do benefício básico. Este benefício pagaria, com as linhas de pobreza atuais, um valor fixo de R$ 105 para as famílias cuja renda declarada no Cadastro Único, antes do recebimento do Bolsa Família, ficasse abaixo de R$ 105 per capita. Considerando que este benefício leva em consideração somente a renda declarada antes do recebimento da transferência de renda e o número de pessoas na família, ele se sobrepõe ao benefício de superação da extrema pobreza, que completa a renda das famílias beneficiárias com valor suficiente para garantir que todas elas tenham renda, após o recebimento do Auxílio Brasil, superior a R$ 105 per capita.

É positivo simplificar esta estrutura para que somente o benefício de superação da extrema pobreza permaneça. A simplificação da estrutura de benefícios facilita a compreensão das famílias sobre os valores a serem recebidos, deixando mais clara a estrutura de proteção social oferecida pelo programa.

A extensão do benefício de composição familiar até os 21 anos também provê incentivos para que os jovens de baixa renda completem o Ensino Médio, considerando os problemas de distorção idade-série observados no Brasil. No entanto, nesse quesito o desenho de poupança proposto por nós no Programa de Responsabilidade Social tem o potencial de ser mais efetivo, conforme será comentado adiante.[2]

Outro ponto digno de nota é que o valor do benefício de primeira infância é superior ao valor da linha de extrema pobreza definida no programa. Tal ponto é importante pois, na estrutura antiga, em que o benefício variável e o benefício variável jovem tinham valor inferior ao da linha de pobreza extrema, o valor desses benefícios para as famílias que permaneciam em situação de pobreza extrema após receber benefícios era irrelevante. Afinal, qualquer aumento ou redução no valor dos demais benefícios ou da renda da família seria integralmente compensada por mudanças de igual valor no benefício de superação da extrema pobreza. Em 2019, mais de 6 milhões de famílias beneficiárias do programa se encontravam nesta condição.[3]

Nesse sentido, ter um benefício da primeira infância com valor superior ao estabelecido para a linha de extrema pobreza garante que todas as famílias com crianças recebam mais benefícios do que famílias sem crianças, para o mesmo patamar de renda declarada. Tal medida vai na direção de uma priorização da primeira infância na estrutura da proteção social brasileira.

A focalização na primeira infância tem dois componentes. Um é associado à capacidade de o desenvolvimento infantil promover a superação da pobreza no longo prazo. Embora a transferência de renda não seja o único fator importante para a promoção do desenvolvimento infantil, sabe-se que a pobreza representa uma fonte de estresse e privações que pode ser relevante para o desenvolvimento das crianças. Portanto, embora não seja a solução definitiva para o desenvolvimento infantil, que depende também de outras políticas sociais, a transferência de renda pode apoiá-lo.

Outro componente é associado ao fato de que a incidência de pobreza na população é bastante associada aos diferentes perfis etários. A pobreza é concentrada em crianças. Nesse sentido, focalizar a estrutura de transferência de renda em benefícios que dependam da idade dos beneficiários, em vez de depender da renda declarada (como faz o benefício de superação da extrema pobreza), pode ser um instrumento importante para melhorar a focalização do programa. No entanto, os efeitos finais dessa mudança sobre a capacidade do Auxílio Brasil de reduzir a pobreza são uma questão empírica que só poderá ser avaliada quando houver dados disponíveis para tal. A título de referência, no desenho antigo, cada R$ 10 bilhões investidos em programas de transferência de renda, a preços de 2019, reduziam a taxa de pobreza (segundo a linha de US$ 1,90) em aproximadamente 0,3 ponto percentual.[4]

Por outro lado, a imposição de valores mínimos de benefício precisa ser avaliada com cautela. A preocupação com este ponto está fundamentada em dois aspectos. O primeiro é o §8º do Art. 22 do Decreto 10.852/2021, que estabelece que o benefício de superação da extrema pobreza passa a ter valor mínimo de R$ 25 por integrante da família. O segundo é o valor mínimo de R$ 400 estabelecido pela Medida Provisória 1.076/2021, por meio do Benefício Extraordinário.

Uma das grandes vantagens do Cadastro Único é a capacidade de coletar informações a respeito do rendimento formal e informal das famílias inscritas. No artigo em que fundamentamos o Programa de Responsabilidade Social, mostramos que a declaração de rendas informais do Cadastro Único reduziu em aproximadamente R$ 20 bilhões por ano as despesas do Bolsa Família. Se insistir em estabelecer benefícios mínimos, o Auxílio Brasil estará, aos poucos, passando a ignorar as informações de renda declarada para aferição do valor a ser recebido pelas famílias. Em outras palavras, a renda importará somente para a aferição de elegibilidade, mas a variação entre os valores recebidos pelas diferentes famílias será menor.

Note-se, ainda, que com o aumento do benefício mínimo a ser pago, aumentará o incentivo a pessoas que estão acima das linhas de pobreza a subdeclarar renda para serem incluídas no programa.

Em um universo de 14 milhões de beneficiários, o Bolsa Família já tinha muita heterogeneidade. Nesse sentido, criar mecanismos que inibam a capacidade do programa de privilegiar as famílias mais pobres dentre as suas beneficiárias pode piorar a focalização e, consequentemente, diminuir a capacidade do programa de combater a miséria. Ter um benefício mínimo de R$ 400 representa um movimento extremo nesta direção. Cada R$ 1 a mais dado para uma família menos pobre é R$ 1 a menos direcionado à família mais pobre. Ou, então, o orçamento do programa terá que crescer muito, e a relação custo-benefício se deteriorará.

Sobre o benefício de transição, chama a atenção que parte dos beneficiários possa manter os valores do Auxílio Emergencial, que claramente tinha um caráter temporário. Até que o Auxílio Brasil tenha condições de ultrapassar os valores do Auxílio Emergencial para essas famílias, a focalização do novo programa será comprometida.

Nesse sentido, ainda que os valores da transferência de renda tenham sido majorados, a manutenção prolongada do Auxílio Emergencial teve efeitos deletérios sobre as políticas de transferência de renda no Brasil, criando uma cultura de benefícios fixos e valores mínimos que vai na contramão da capacidade de focalização observada no Bolsa Família.

Apesar de o Cadastro Único dispor de um conjunto extremamente rico de informações, esses dados são cada vez menos utilizados: se antes eles eram cruciais não só para aferir elegibilidade como também os valores de benefício, agora os valores de benefício ficarão menos dependentes das informações familiares.

No Programa de Responsabilidade Social trabalhamos na direção oposta: valorizar as informações do cadastro e modular o valor do benefício de acordo com a renda de cada família. Apesar de o Auxílio Brasil ter simplificado o Bolsa Família, nossa proposta de simplificação era ainda mais incisiva. O uso de uma linha de pobreza e outra linha de extrema pobreza, com diferentes conjuntos de benefícios associados a cada uma delas, complica desnecessariamente o programa. Por isso, nossa proposta foi na direção de unificar todos os benefícios em torno do benefício de superação da extrema pobreza, que chegaria em um valor mais alto com essa mudança.

Ainda que possa parecer que famílias que hoje são elegíveis ao benefício de primeira infância e o benefício de composição familiar poderiam perder com a fusão geral de benefícios em torno do benefício de superação da extrema pobreza, o robustecimento da rede de proteção social seria capaz de oferecer um seguro mais efetivo para elas do que o arranjo atual oferece. Afinal, no arranjo que havíamos proposto os benefícios para as famílias menos pobres eram menores, mas os benefícios voltados para as famílias mais pobres eram maiores, de modo a protegê-las melhor das adversidades econômicas. Não podemos avaliar os efeitos do programa sobre as famílias imaginando que a renda delas será estática, imóvel. A renda das famílias flutua, e é preciso desenhar os programas de forma que a proteção oferecida seja máxima nos momentos de maior necessidade.

Por fim, o benefício de superação da extrema pobreza, no Auxílio Brasil, mantém a mesma característica que tinha no Bolsa Família: para cada aumento de R$ 1 na renda declarada pelas famílias beneficiárias, o benefício cai R$ 1. Tal diminuição representa um custo excessivo para famílias de baixa renda que se inserem produtivamente, e, por conta disso, nossa proposta já caminhava na direção de uma redução no desconto do valor do benefício diante de aumentos na renda declarada. Embora o governo tenha dado ênfase à ideia de estímulo ao esforço e à emancipação, ele não deu atenção a esse fator central de punição excessiva para as famílias que buscam trabalho.

Novas linhas de pobreza e pobreza extrema

Os valores das linhas de pobreza e pobreza extrema foram reajustados. Serão consideradas extremamente pobres as famílias com renda familiar per capita de até R$ 105. As famílias pobres serão aquelas que estão acima desse valor e abaixo de R$ 210.

Considerando a inflação medida pelo INPC, acumulada desde o início do Bolsa Família até outubro de 2021, a linha de pobreza extrema já deveria estar em R$ 136 per capita. Nesse sentido, embora tenha sido um avanço relevante, similar à variação do INPC entre março de 2019 e outubro de 2021, a recomposição anunciada ainda fica aquém do que era pago no início do programa.

O conceito de renda familiar

Esse conceito é de importância central pois, se há exclusão de fontes de renda, famílias com composição e condições financeiras similares acabam recebendo transferências distintas. Por exemplo, se algum benefício pago pelo governo não é considerado no cômputo da renda, famílias que recebem tal benefício ficarão em situação melhor do que as que não o recebem. Em particular, na medida em que rendimentos do trabalho são integralmente considerados no cômputo da renda, isso reduz o incentivo ao trabalho e vai em direção contrária à emancipação que o governo alega ser um componente fundamental do Auxílio Brasil.

No caso do Bolsa Família, a renda era representada pelos rendimentos brutos dos familiares, descontando-se os rendimentos advindos de programas oficiais de transferência de renda. No caso do Auxílio Brasil, as exclusões ficaram para ser definidas em regulamento. Vale destacar que exclusões em excesso, que porventura sejam estabelecidas em decreto, poderão distorcer o foco e os incentivos do programa.

Descontinuidade no pagamento dos benefícios

Assim como o Bolsa Família, o Auxílio Brasil apresenta um problema de descontinuidade. Uma família com uma criança recém-nascida que esteja 1 centavo acima da linha de pobreza não é elegível ao recebimento de qualquer benefício, enquanto a mesma família com 1 centavo abaixo da linha de pobreza recebe R$ 130 mensais.

O formato do benefício de superação da extrema pobreza também pune excessivamente as famílias por conta de seus rendimentos do trabalho. Enquanto o modelo atual propõe que cada real de aumento na renda do trabalho (ou de outros benefícios cuja renda seja descontada) gere uma redução no benefício de superação da extrema pobreza na mesma magnitude, propusemos, no Programa de Responsabilidade Social, uma redução menor desse valor.

No Programa de Responsabilidade Social, a transferência de renda seria de R$ 125 per capita para toda família incluída no Cadastro Único, deduzindo-se desse valor tudo o que fosse recebido em outras rendas (sem dar exceção a qualquer renda). Mas somente 80% das rendas do trabalho – formal ou informal – seriam consideradas para fins de aferição da elegibilidade e do valor dos benefícios das famílias.

Nesse caso, não se fazia necessário estabelecer duas linhas de pobreza, tornando o programa mais simples. Assim, não haveria corte abrupto de benefício e nem pagamentos muito díspares a famílias que são muito parecidas, e sim uma redução gradual dos benefícios à medida que a renda da família fosse aumentando e o pagamento de benefícios similares a famílias em condições socioeconômicas comparáveis.

Vale destacar que, com o benefício mínimo de R$ 400 para as famílias beneficiárias do Auxílio Brasil, as descontinuidades ficam ainda mais graves do que anteriormente ocorria. Enquanto uma família composta por uma mãe com uma criança que tenha R$ 220 de renda per capita não tem direito a nenhum benefício, a mesma família passa a ter direito ao benefício com uma renda per capita de R$ 200. Apesar de serem a mesma família em estados da natureza muito próximos (R$ 220 ou R$ 200 de renda per capita), a primeira recebe R$ 400 de benefício (chegando a R$ 400 de renda per capita), enquanto a segunda não recebe nada (permanecendo com R$ 220 per capita). Em vez de reduzir a desigualdade, este desenho a acentua: a família com R$ 220 de renda per capita fica para trás.

A questão da fila de espera

O Bolsa Família permitia o acúmulo de fila de espera: famílias elegíveis poderiam ter que aguardar a inclusão no programa, conforme disponibilidade de recursos orçamentários. O Auxílio Brasil, no texto aprovado na Câmara, tornava obrigatório o pagamento a todas as famílias elegíveis. Portanto, vedava a formação de fila. O Senado alterou o texto para reintroduzir a possibilidade de formação de fila.

Em geral, a vedação à formação de fila para ingresso no programa é vista como uma medida justa e positiva, impedindo que se negue um direito legal a uma família necessitada. Na prática, contudo, a vedação à formação de fila pode gerar distorções e perda de foco do programa, ao mesmo tempo em que tira do governo a possibilidade de controlar a despesa total com o programa, gerando mais gastos obrigatórios e rigidez orçamentária.

Pode acontecer o mesmo que se deu com o Benefício de Prestação Continuada (BPC): advogados se especializarão em explorar as brechas da lei e demandarão, na Justiça, o pagamento do benefício a famílias acima dos limites oficiais de pobreza. Como no caso do BPC, apresentarão evidências de que as famílias são pobres e precisam de assistência, a despeito de terem renda familiar per capita acima dos limites fixados na lei.

O controle do acesso aos benefícios passará das mãos dos centros de assistência social, que conhecem e identificam a pobreza, para o Judiciário, onde ganha mais, e mais rápido, quem tem acesso a advogado. Para que se tenha uma ideia da perda de controle sobre o gasto, vale lembrar que, de 2010 a 2020, a despesa com o BPC cresceu 61% acima da inflação. Vale destacar que as concessões judiciais de BPC para deficientes físicos já se situam na faixa de 30% das concessões totais.[5]

No Auxílio Emergencial, a judicialização também foi significativa. Somente a Defensoria Pública da União[6] instaurou mais de 200 mil processos de assistência jurídica, com mais de 70 mil casos judicializados.

A redação final da lei, que foi adaptada de última hora para permitir a formação de fila, deixou brecha para contestação judicial. O texto aprovado na Câmara impedia textualmente a formação da fila:

“Art. 4º………………………………………………………………………..

………………………………………………………………………………….

§ 3º Os benefícios financeiros previstos nos incisos I, II e III do caput deste artigo constituem direito das famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza a eles elegíveis nos termos desta Lei, sendo-lhes assegurado o acesso às transferências de renda tão logo se verifique que elas preenchem os requisitos para isso, na forma dos procedimentos fixados no regulamento. (grifo nosso)

O Senado preservou esse texto, mas agregou, ao final do parágrafo 3º, a expressão “observando-se o previsto no § 1º do art. 21”, que estipula a possibilidade de restrição à concessão do benefício conforme a limitação das disponibilidades orçamentárias. Porém, o próprio caput do art. 21 mais uma vez reforça o atendimento a todas as famílias elegíveis:

Art. 21. As despesas do Programa Auxílio Brasil correrão à conta das dotações alocadas ao Programa, que deverão ser suficientes para atender a todas as famílias elegíveis aos benefícios de que tratam os incisos I, II, III e IV do caput do art. 4º desta Lei.

§ 1º O Poder Executivo federal poderá compatibilizar a quantidade de beneficiários e de benefícios financeiros previstos nos incisos I, II, III e IV do caput do art. 4º e nos incisos I, II, III, IV e V do caput do art. 5º desta Lei com as dotações orçamentárias disponíveis. (grifo nosso)

Não será difícil explorar tese jurídica de que o caput do art. 21 está em conflito com o seu § 1º, ou afirmar que “dotações orçamentárias” se fazem disponíveis na medida do que é necessário para cumprir a lei, de modo que o § 1º não seria uma limitação.

Além dos riscos de judicialização associados à redação da nova lei, é importante destacar que o que comumente se chama de fila de espera é o mecanismo que vincula as concessões de benefício do programa, no nível municipal, a estimativas municipais de pobreza do IBGE, calculadas de acordo com os dados do Censo Demográfico.

Afinal, como o programa prevê a formação de filas de espera, é preciso haver um critério para priorizar as concessões entre o universo de beneficiários elegíveis, pois pode ser que o orçamento disponível não permita o atendimento de todos instantaneamente, embora permita a concessão de benefícios para um subgrupo desse universo.

A forma como o Bolsa Família previa a priorização era a partir da comparação entre o total de famílias pobres estimado para cada município segundo o Censo Demográfico e o total de famílias beneficiárias naquela localidade. Assim, as concessões ocorreriam primeiro onde havia mais famílias identificadas pelo Censo do que famílias beneficiárias.

Este mecanismo cria um incentivo para que as gestões municipais zelem pela proximidade dos dados cadastrais registrados no Cadastro Único com os dados do Censo Demográfico. Tal mecanismo é importante pois, como o governo federal só observa as rendas formais e o Brasil tem elevadas taxas de informalidade, há espaço para subdeclaração de rendas no Cadastro Único. Como é o governo federal quem financia os benefícios mais importantes atrelados ao Cadastro Único, as filas são uma forma de, baseando-se nas evidências do IBGE, ancorar o número de beneficiários de políticas sociais em cada localidade.

Por isso, é importante contar com mecanismos adicionais para garantia da qualidade cadastral, e um desses mecanismos é alinhar os incentivos da gestão municipal com aqueles da gestão federal, considerando que é a gestão municipal quem realiza as entrevistas de cadastramento e lida com as famílias cotidianamente. Assim, a gestão municipal tem mais condições do que o governo federal de garantir a fidedignidade das informações prestadas, e este ponto pode ser crucial para a construção de uma rede de proteção social capaz de identificar as pessoas em real situação de vulnerabilidade. Num país com os níveis de informalidade do Brasil, dizer que todos os elegíveis terão acesso automático é tirar o incentivo que o município tem para fazer uma adequada seleção dos mais pobres, passando a aceitar o máximo possível dos seus residentes no programa.[7]

Com o mecanismo das filas em funcionamento, municípios que cadastrem um número de famílias muito superior àquele verificado pelo IBGE demorarão mais para incluir novos beneficiários no programa do que aqueles em que há maior correspondência entre essas duas variáveis.

Assim, as filas não são um impeditivo para a expansão da política social. O que é crucial é que o IBGE tenha condições de manter as informações municipais de pobreza atualizadas (por meio do Censo, ou de outras pesquisas que possam vir a ser feitas com esta finalidade), que haja critérios para se definir como excepcionalizar esta regra em casos de calamidade ou emergência social e que haja orçamento para os programas de transferência de renda compatíveis com os níveis de pobreza observados no país.

Como discutido anteriormente neste texto, e no Programa de Responsabilidade Social, a subdeclaração de rendas no Cadastro Único é limitada, embora exista em alguma medida. Nesse sentido, alterações nas regras que regem a estrutura de incentivos entre os diferentes entes da União podem diminuir a capacidade do Cadastro Único de caracterizar o perfil socioeconômico das famílias brasileiras e, portanto, devem ser alteradas somente com extrema cautela.

Em outras palavras, abrir mão deste mecanismo significa uma mudança radical na focalização do programa, que tem uma capacidade singular de beneficiar a população do quintil de renda mais pobre, quando comparados outros países.[8]

Quando a principal variável para a determinação da elegibilidade das pessoas a benefícios não é facilmente observada, mecanismos indiretos de focalização podem ser poderosos. Por exemplo, caso o Seguro-Defeso tivesse se baseado em estimativas locais para a quantidade de pescadores em cada região, os problemas de focalização apontados na sua Avaliação Executiva[9] talvez pudessem ter sido minorados.

Por esses motivos, e por acreditarmos que as ações de cadastramento das gestões municipais poderiam ser financiadas de acordo com a cobertura dos programas de transferência de renda observadas nas estatísticas de pobreza, a proposta do Programa de Responsabilidade Social mantinha a vinculação entre as estimativas de pobreza calculadas a partir de pesquisas estatísticas e a concessão de benefícios.

Um argumento para determinar o fim da fila seria uma suposta determinação do STF nesse sentido. Todavia, o voto do relator, ministro Gilmar Mendes, no Mandado de Injunção 7300 – Distrito Federal, acatado pela maioria do plenário da Corte, em nenhum momento determina que se vede a formação de fila. Pelo contrário, toda a argumentação é no sentido de se compatibilizar a assistência social aos mais pobres com a restrição orçamentária, e pela estratégia gradual de implementação de benefícios.

Benefício focalizado vs. benefício universal

Há um antigo debate sobre qual a melhor maneira de prover benefícios de transferência de renda: se focalizados nos mais pobres ou universais, pago a todos os cidadãos. O Brasil tem um histórico positivo de focalização, com o Bolsa Família sendo instrumentalizado pelo uso do Cadastro Único. Ademais, a universalização tem custo fiscal elevado. Por isso, no Programa de Responsabilidade Social advogamos pela focalização, e mostramos como a adoção de programas de transferência de renda universais pode comprometer a capacidade da rede de proteção social de erradicar a pobreza.

O Auxílio Brasil também possui uma lógica de focalização, porém deixa a porta aberta para a universalização, ao instituir já em seu art. 1º que:

Art. 1º………………………………………………………………………….

Parágrafo único. O Programa Auxílio Brasil constitui uma etapa do processo gradual e progressivo de implementação da universalização da renda básica de cidadania a que se referem o caput e o § 1º do art. 1º da Lei nº 10.835, de 8 de janeiro de 2004. (grifo nosso)

Lei 10.835/2004, acima referida, estipula uma transferência universal de renda a todos os brasileiros, expandindo-se a clientela de forma paulatina. A lei do Auxílio Brasil deveria ter revogado integralmente a Lei 10.835/2004, e reafirmado a opção pela focalização dos benefícios. A própria decisão do STF no âmbito do já citado MI 7.300 – DF deu a senha para esse encaminhamento no último parágrafo do voto do ministro relator:

ii) realizar apelo aos Poderes Legislativo e Executivo para que adotem as medidas administrativas e/ou legislativas necessárias à atualização dos valores dos benefícios básico e variáveis do programa Bolsa Família (Lei 10.836/2004), isolada ou conjuntamente, e, ainda, para que aprimorem os programas sociais de transferência de renda atualmente em vigor, mormente a Lei 10.835/2004, unificando-os, se possível. (grifo nosso)

A disputa entre universalismo e focalização está presente também na chamada PEC dos Precatórios (PEC 23/2021), aprovada no Senado e pendente de ratificação pela Câmara, que adiciona o seguinte direito social ao art. 6º da Constituição:[10]

“Art. 6º …………………………………………………………

……………………………………………………………………

Parágrafo único. Todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária.” (grifo nosso)

O dispositivo pode ser lido como a criação de um direito focalizado nos indivíduos “em situação de vulnerabilidade social”. Contudo, o conceito de “vulnerabilidade social” pode ser definido em lei de modo amplo, abarcando parcela significativa da população. Ademais, a simples constitucionalização do tema, em um artigo que trata de direitos universais, já parece ser um suporte à tendência à universalização.

Cadastro único e descentralização

Não há alterações de relevo sobre o uso do Cadastro Único para operacionalizar os benefícios do Auxílio Brasil em relação ao que se fazia no âmbito do Bolsa Família. Tampouco há mudanças relevantes nos mecanismos de premiação e incentivos aos estados e municípios para aperfeiçoarem a gestão descentralizada do programa.

Consideramos que há espaço para melhorar a qualidade das informações, bem como aumentar a agilidade na atualização dos dados, simplificar a coleta de dados e os questionários.

Vale destacar que o Brasil, mesmo durante a vigência do Bolsa Família, já dispunha de programas de transferência de renda capazes de erradicar a pobreza na linha de US$ 1 por dia por pessoa. No entanto, isso nunca aconteceu: de 2012 a 2019, a taxa de pobreza segundo esta linha sempre esteve acima de 2%.[11] A pobreza segundo a linha de US$ 1 nunca foi erradicada por uma combinação de dois motivos: dificuldade de identificação de famílias estruturalmente pobres para sua inscrição no Cadastro Único e desatualização dos dados de famílias inscritas no Cadastro Único cuja situação econômica se deteriorou significativamente.

Nesse sentido, ter uma agenda que aproxime ainda mais a realidade observada em pesquisas estatísticas daquela retratada pelos registros administrativos é crucial para que as políticas públicas tenham capacidade de efetivamente transformar a realidade social brasileira.

De um lado, é preciso repensar a estrutura dos sistemas de cadastramento. Parte relevante dos esforços de cadastramento é atualmente concentrada em processos de revisão e averiguação cadastral. Permitir que as famílias possam fazer sua atualização cadastral de forma eletrônica tem o potencial de liberar as equipes de cadastramento para outras atividades, como a busca ativa de pessoas em situação de vulnerabilidade social. No entanto, fazer com que todo o processo de cadastramento seja eletrônico oferece o risco de aumento relevante da entrada de pessoas não elegíveis nos programas sociais.[12]

De outro, é importante direcionar recursos para a atividade de busca ativa e, ao mesmo tempo, premiar os municípios e estados que tenham bons indicadores de focalização, indo além dos indicadores de qualidade cadastral tipicamente empregados (que se resumem à proporção do número de famílias com o cadastro atualizado). Para tal, é crucial que o sistema de estatísticas colete cada vez mais dados relevantes para o monitoramento e a avaliação de políticas sociais, como guia deste processo. A focalização, identificando os públicos adequados para cada programa social, tem potencial para a maximização dos efeitos da política social na sociedade brasileira a um custo factível.

Incentivos ao esforço individual e à emancipação produtiva (art. 5º)

Além dos benefícios de transferência de renda, contidos no art. 4º e acima descritos, o Auxílio Brasil contém outros auxílios com o propósito de recompensar o esforço e bom desempenho de indivíduos que estejam em famílias em situação de pobreza ou pobreza extrema.

O Auxílio Criança Cidadã é basicamente um “vale creche” para que as famílias possam colocar suas crianças em creches privadas, não precisando ficar na fila aguardando vaga em creches públicas. Tem o mérito de romper (ainda que parcialmente) com a tradição brasileira – inscrita no art. 213 da Constituição – de que a educação provida pelo Estado tem que ser ofertada prioritariamente em instituições públicas, com as entidades privadas atuando apenas de forma suplementar e temporária. Esse monopólio na provisão de instituições educacionais gera problemas de incentivos e custos, resultando em sub-oferta e baixa qualidade. Programas de financiamento público ao ensino privado já foram implementados no ensino superior (FIES e Prouni) e agora a experiência se repete no nível pré-escolar.

O risco que existe é de que se pague um valor baixo, atraindo apenas creches de baixa qualidade. Ou que a regulação seja frouxa e, mesmo mediante boa remuneração, o serviço provido seja deficiente. O benefício efetivo dependerá, portanto, da qualidade na execução da política.

O Decreto 10.852/2021 estipulou um valor de R$ 200 mensais para creche em tempo parcial e R$ 300 para tempo integral. Um valor nacionalmente unificado corre o risco de ser baixo nas cidades mais desenvolvidas, de custo de vida mais alto, e excessivo nas cidades menos desenvolvidas.

O Auxílio Esporte Escolar e a Bolsa de Iniciação Científica Júnior são pagamentos feitos a crianças das famílias atendidas pelo Auxílio Brasil que se destacam nos esportes ou nos estudos. É previsto um pagamento inicial e único à família (R$ 1.000, conforme o Decreto 10.852/2021) e um pagamento de 12 parcelas ao beneficiário (R$ 100).

No entanto, faz pouco sentido premiar com dinheiro o bom desempenho escolar ou esportivo de alguns estudantes sem robustecer a estrutura de incentivos dos demais para permanecer na escola. No Programa de Responsabilidade Social sugerimos um depósito anual de poupança, que só seria resgatado ao final do Ensino Médio, como forma de diminuir a evasão escolar nessa etapa de estudos. Esse estímulo, com foco em longo prazo, já foi testado e aprovado em experiências anteriores, com resultados melhores do que a transferência direta de recursos.[13]

Ainda que a nossa proposta também propusesse bolsas de iniciação científica para os jovens de alto desempenho, é importante que essa ação venha acompanhada de um conjunto de outras ações para ampliar a identificação de jovens talentosos nas diversas olimpíadas existentes no país, assim como nos exames nacionais (como o Enem). Isso passa não só pela concessão de bolsa de estudos para o jovem, mas pelo apoio às olimpíadas e pela criação de mecanismos de acompanhamento destes estudantes com o objetivo de apoiá-los nas demais fases da vida escolar.

O Cadastro Único é bastante focado na identificação das vulnerabilidades das famílias; para promover a emancipação, é preciso enriquecê-lo com os dados de desempenho e habilidades. Ainda que parte da dificuldade das famílias de baixa renda na superação definitiva da pobreza precise de programas de desenvolvimento infantil para ser superada, há um universo de jovens extremamente talentosos que estão tendo seus talentos desperdiçados por conta da vulnerabilidade social. Nesse sentido, é preciso adotar um conjunto mais amplo de ações do que somente uma bolsa de estudos por um ano e um prêmio pecuniário oferecido à família.

O Auxílio Inclusão Produtiva Urbana seria, na versão original enviada pelo Poder Executivo ao Congresso, um pagamento adicional para indivíduos que obtivessem um emprego formal. Na Câmara, foi substituído por uma poupança, formada a partir de depósitos mensais regulares, em nome do membro da família que obtenha renda de trabalho em atividade na qual faça contribuição previdenciária.

Essa poupança foi inspirada na nossa proposta de Poupança Seguro Família, contida no Programa de Responsabilidade Social. Contudo, as adaptações feitas pela Câmara descaracterizaram o instrumento inicial.

Em primeiro lugar, a nossa proposta não discriminava o tipo de atividade geradora da renda do trabalho – se formal ou informal, se geradora de contribuição à previdência ou não. Já a proposta aprovada na Câmara limita o benefício a quem tem renda de atividades que implicam contribuição à previdência.

Em segundo lugar, a poupança que propusemos atuava em conjunto com a transferência de renda. À medida que a renda da família oriunda do trabalho fosse aumentando, diminuiria a parcela referente à transferência de renda e aumentaria o valor do depósito de poupança. Isso reduziria a perda imposta à família que declarasse renda e funcionaria como uma porta giratória: melhorou de vida, ganha uma poupança para amenizar a volatilidade de renda que caracteriza a população que atua em atividades informais ou por conta própria; piorou a renda por vários meses seguidos, volta a receber a transferência em espécie.

Em terceiro lugar, o esquema geraria economia fiscal, à medida que o gasto com os depósitos de poupança seria bastante inferior ao da transferência de renda.

Esse mecanismo ligando os dois benefícios foi quebrado, a menos que o regulamento venha a desenhar a poupança visando essa articulação com a transferência de renda.

Também chama a atenção que o Auxílio Brasil exclua, das políticas emancipatórias, as famílias com rendimentos completamente informais. Tais políticas, em vez de serem usadas como uma oportunidade de ampliar o leque de serviços disponíveis às famílias de baixa renda que espontaneamente informam seus rendimentos ao Cadastro Único, estão focalizadas em trabalhadores autônomos, empreendedores individuais e profissionais liberais (§2º do Art. 8º), para o caso das creches, ou para trabalhadores que recolhem para a Previdência Social (inciso II do Art. 17), no caso do Auxílio Inclusão Produtiva Rural.

Restringir os benefícios a esses grupos de trabalhadores ignora o fato de que famílias que espontaneamente declaram suas rendas informais ao Cadastro Único estão contribuindo com o sistema de proteção social, uma vez que a declaração dessas rendas reduz o valor de seus benefícios. Além disso, impõe um custo burocrático de formalização que muitas vezes não traz vantagens reais aos trabalhadores informais, já em situação bastante precária de trabalho. Finalmente, desconsidera a principal motivação para a criação do Auxílio Emergencial, que foi o fato de que milhões de trabalhadores informais que tiveram perda súbita de renda não tinham nenhuma forma de proteção social.

O Auxílio Inclusão Produtiva Rural será pago ao agricultor familiar de baixa renda, condicionado a doações de alimentos feitos por esses agricultores para famílias em situação de vulnerabilidade social. O auxílio será pago por, no máximo, 36 meses.

Agricultores familiares de baixa renda têm, em geral, baixa produtividade, e suas lavouras não geram excedentes para doações. Ademais, há um custo logístico de armazenagem, transporte e distribuição dos alimentos que não é desprezível. Muito provavelmente o auxílio será pago com base em uma cláusula que dispensa a doação em caso de ela se mostrar inviável. Assim sendo, esse auxílio será, na prática, uma transferência de renda adicional, como já funcionava o programa anterior.

Programa Alimenta Brasil (art. 30 a 41)

Um terceiro braço de política social contido na nova lei – além dos benefícios financeiros (art. 4º) e dos estímulos ao esforço e emancipação (art. 5º) – é a criação do programa Alimenta Brasil.

Na prática, trata-se de uma reembalagem do Programa de Aquisição de Alimentos (Lei 10.696/2003), de escopo e alcance bastante limitados. De modo geral, consiste na aquisição da produção de agricultores familiares visando distribuir à população carente ou abastecer o setor público em suas necessidades de consumo (merenda escolar, por exemplo).

Não é difícil imaginar dificuldades práticas no modelo. Agricultores familiares não têm escala e excedente de produção em volume suficiente para abastecer um programa de distribuição de alimentos de grandes proporções. Os custos de logística, armazenagem e perda por perecimento serão elevados. Há chances de as aquisições passarem a ser feitas junto aos produtores menos vulneráveis, protegendo do mercado produtores com condições de competir autonomamente.

O custo e os riscos fiscais

A Medida Provisória 1.076/2021 instituiu o “Benefício Extraordinário”, que complementará os “benefícios financeiros” pagos nos termos do PLV 26/2021 até que cada família receba, pelo menos, R$ 400.

Esse benefício vale para o mês de dezembro de 2021, mas pode ser estendido para todo o exercício de 2022. Politicamente, parece ter havido a decisão de transformar os R$ 400 de valor médio dos benefícios em valor mínimo.

Dado o grau de compromisso político e a proximidade do processo eleitoral, será surpreendente se o “Benefício Extraordinário” não for estendido para todo o ano de 2022. E, se isso for feito, será muito difícil cortar os valores ao final daquele ano, assim como a própria criação do Benefício Extraordinário mostra o quão difícil está sendo decretar o fim de facto do Auxílio Emergencial.

Tendo em vista a elevação das linhas de pobreza e pobreza extrema e a queda de renda decorrente da pandemia, o público elegível será maior que os 17 milhões de famílias inicialmente previstos pelo governo. O valor elevado do benefício mínimo também atrairá interessados que têm renda acima das linhas de pobreza, mas podem ocultá-las no registro do Cadastro Único. As simulações feitas à época da elaboração do Programa de Responsabilidade Social sugerem que a clientela do novo programa pode se aproximar de 20 milhões de famílias. Nesse caso, partimos de uma despesa mínima de R$ 96 bilhões (20 milhões de famílias x 12 meses x 400).

Esse valor, contudo, pode se elevar, pois a combinação de benefícios ofertados pode, com certa facilidade, ultrapassar o piso de R$ 400. O quadro abaixo apresenta os valores dos benefícios e exemplos de composições familiares que gerariam pagamentos superiores a R$ 400.

tabela auxílio brasil

Fontes: PLV 26/2021 e Decreto 10.852/2021

É verdade que o PLV 26/2021 preservou o poder do governo para limitar a concessão dos benefícios à disponibilidade orçamentária. Porém, como comentado nas seções anteriores, há forças significativas apontando na direção de transformar o Auxílio Brasil em um programa de pagamento obrigatório a todos que cumprem os requisitos. A possibilidade de judicialização e a tendência a caminhar para a universalização explícita no próprio texto do PLV 26/2021 indicam que não será fácil segurar a concessão de benefícios apenas com o argumento de falta de dotação orçamentária.

O que temos é uma despesa obrigatória saltando de R$ 35 bilhões (orçamento atual do Bolsa Família) para, pelo menos, R$ 96 bilhões: um salto de 174%, com tendência a aumentos adicionais. Em mensagem enviada ao Congresso, o Poder Executivo prevê para 2022 uma despesa do Auxílio Brasil de R$ 89,1 bilhões, possivelmente confiando no seu poder de racionar a concessão dos benefícios. Mesmo que esse valor venha a se realizar, ele já representa um aumento de 155% em relação ao orçamento original do Bolsa Família.

O custo se tornou bastante elevado. Tendo em vista os problemas de focalização apontados ao longo do texto, a relação custo-benefício deve se deteriorar. De fato, no Programa de Responsabilidade Social, era possível prover cobertura e assistência, via transferência de renda ou poupança, para os 40% mais pobres da população com um orçamento de aproximadamente R$ 57 bilhões. Esse valor estava a preços de 2019. Se corrigirmos esse valor pelos 15,5% de inflação ocorridos nos 24 meses encerrados em novembro de 2021, chegaríamos a R$ 65,8 bilhões. Haveria uma economia de, pelo menos, R$ 23,3 bilhões em relação ao gasto mínimo previsto para o Auxílio Brasil (89,1-65,8), com resultados mais efetivos de redução de pobreza e proteção aos informais.

Ademais, não se pode deixar de registrar que o problema fiscal transcende a expansão dos gastos. Para viabilizá-la foi necessário desmontar o teto de gastos, aprovando-se a chamada PEC dos Precatórios, bem como suspendendo temporariamente uma regra da Lei de Responsabilidade Fiscal que exige compensação fiscal quando da criação ou aumento de despesas de caráter permanente. Isso abre espaço para a expansão de outros gastos, já tendo afetado fortemente os fundamentos da economia (juros, câmbio e inflação) com reflexos sobre a retomada do crescimento e a capacidade do mercado de trabalho de absorver os desempregados.

Conclusão

Este artigo tem por objetivo analisar o Auxílio Brasil, aprovado recentemente pelo Congresso, comparando-o com o Bolsa Família e com o Programa de Responsabilidade Social, que elaboramos a convite do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP) em setembro de 2020.

O Programa de Responsabilidade Social consiste em uma proposta de aprimoramento da rede de proteção social brasileira, respeitando a necessidade de equilíbrio das contas públicas. Seus objetivos são eliminar a pobreza extrema imediatamente, emancipar as famílias vulneráveis da condição de pobreza e proteger os trabalhadores informais da volatilidade de sua renda.

No Programa de Responsabilidade Social defendemos a manutenção do princípio da focalização adotado pelo Bolsa Família e mostramos como a adoção de programas de transferência de renda universais pode comprometer a capacidade da rede de proteção social de erradicar a pobreza.

Um instrumento fundamental de focalização é o Cadastro Único. Neste sentido, fizemos várias sugestões visando a intensificação de seu uso e seu aprimoramento como parte essencial da construção de uma proteção social eficaz.

O Auxílio Brasil se distancia da nossa proposta em várias dimensões importantes. Embora mantenha o espírito de focalizar a atenção nos mais pobres, o texto final aprovado no Congresso indica que ele seria apenas uma transição para uma renda básica universal e, portanto, paga a todos os cidadãos.

Além de ter perdido a oportunidade de aprimorar o Cadastro Único, o Auxílio Brasil também fragiliza sua capacidade de coletar informações a respeito da renda das famílias inscritas ao estabelecer um valor mínimo de R$ 400 para o benefício familiar. Com isso, as informações da renda familiar, contidas no Cadastro Único, deixam de ser usadas para dosar o montante do benefício pago a cada família. Além disso, aumenta o incentivo para que famílias acima da linha de pobreza informem renda inferior ao valor da sua renda real para receber o benefício. O resultado é o aumento do custo total do programa e a perda de capacidade de transferir mais a quem está em situação pior.

O Auxílio Brasil também tem um foco excessivo no trabalho formal, que já dispõe dos benefícios associados à seguridade social, deixando os trabalhadores informais à margem da estrutura de benefícios proposta. Nesse sentido, desconsidera a principal motivação para a criação do Auxílio Emergencial, que foi o fato de que milhões de trabalhadores informais que tiveram perda súbita de renda não tinham nenhuma forma de proteção social.

Na Câmara dos Deputados, um dos benefícios do Auxílio Brasil, o Auxílio Inclusão Produtiva Urbana, foi substituído por uma poupança, inspirada na nossa proposta de Poupança Seguro Família, contida no Programa de Responsabilidade Social. Contudo, as adaptações feitas pela Câmara descaracterizaram o instrumento inicial, ao não considerar que essa poupança deveria contrabalançar a redução o benefício de transferência de renda quando melhorasse a situação da família. Ademais, restringiu o acesso à poupança a quem tem renda de atividades com contribuição previdenciária.

Por fim, diferentemente do Programa de Responsabilidade Social, que compatibilizava uma melhoria significativa do sistema de proteção social com o equilíbrio das contas públicas através da fusão do Bolsa Família com programas sociais ineficientes (Abono Salarial, Salário Família e Seguro Defeso), o Auxílio Brasil representa elevado risco fiscal e mantém programas com baixa capacidade de redução da pobreza.

De fato, o gasto previsto do Auxílio Brasil é de, pelo menos, R$ 89,1 bilhões, podendo ultrapassar R$ 96 bilhões. Por outro lado, se aplicarmos uma correção de cerca de 15,5% ao orçamento do Programa de Responsabilidade Social, de modo a corrigir pela inflação recente e o fato de que trabalhamos com dados de 2019, este orçamento alcançaria R$ 65,8 bilhões. Gastaríamos R$ 23,3 bilhões a menos que o Auxílio Brasil, com melhores resultados em termos de redução da pobreza e atenção aos trabalhadores informais.

A despesa do Auxílio Brasil sobrecarrega as contas públicas. Seria possível obter o mesmo impacto sobre a pobreza a custo significativamente inferior, como mostramos no Programa de Responsabilidade Social. Ademais, para viabilizar esse aumento de despesas foi necessário desmontar o teto de gastos e enfraquecer a Lei de Responsabilidade Fiscal, com impactos negativos sobre a capacidade de recuperação do crescimento, do emprego e da renda.


[1] Estudo, projetos de lei e de PEC e apresentação da proposta podem ser encontradas em: https://cdpp.org.br/pt/2020/09/11/programa-de-responsabilidade-social-diagnostico-e-proposta/

[2] Vide https://bit.ly/3rLytqs

[3] Fonte: Relatório de Informações Sociais do Ministério da Cidadania. Consulta realizada em 07/12/2021.

[4] Vide https://bit.ly/3IHkMyO

[5] Vide https://bit.ly/3s01miT

[6] https://www.dpu.def.br/dados-auxilio-emergencial, dados extraídos em 08/12/2021.

[7] Vide https://bit.ly/31Q2drH

[8] Vide os relatórios do Banco Mundial, The State of Safety Nets, de 2015 e 2018, nos links: https://bit.ly/3dszSdi e https://bit.ly/3rLXQc2

[9] Vide https://bit.ly/3rJiUj4

[10] Esse dispositivo não foi incluído na versão parcial promulgada pelo Congresso Nacional, ficando sua aprovação dependente de nova apreciação pela Câmara dos Deputados.

[11] Vide https://bit.ly/3lJHLjd. Vale destacar que a amostra da PNAD Contínua é construída de modo a estimar o comportamento de variáveis associadas ao mercado de trabalho, e não o comportamento da taxa de pobreza. No entanto, a construção da amostra sugere que o viés seja no sentido de a PNAD Contínua subestimar a pobreza, o que reforça os argumentos colocados.

[12] Vide https://bit.ly/3rJO220

[13] Vide https://bit.ly/3lL2VNQ e https://bit.ly/3dtRcOW

Link da publicação: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/auxilio-brasil-avaliacao-do-desenho-e-possiveis-impactos-15122021

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

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